No livro “Carta a Portugal – divagações de um velho sertanejo sobre a Água e a Pedra endereçadas ao Senhor Presidente”, o personagem criado por Fernando Dourado Filho escreve uma longa correspondência para o atual presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, propondo a anexação do Brasil por Portugal. Na carta, o idoso sertanejo Agenor Dias da Silva divaga sobre a história do Brasil e analisa as riquezas nacionais e as mazelas deste complicado país dos trópicos, procurando convencer o presidente de Portugal da importância desta fusão da ex-colônia com a moderna nação portuguesa. A carta suscita uma grande pergunta: o que pensaria o presidente de Portugal, e de que forma responderia a esta estranha proposta do velho sertanejo pernambucano? Poderia ser esta a resposta:
Prezado senhor Agenor:
Li e reli com muito interesse sua correspondência, e fui mudando minhas impressões a cada nova leitura. Confesso que, no início, percebi a sua proposta como uma brincadeira meio boba, até me irritei um pouco, sentindo que o senhor estaria a me provocar. Mas, aos poucos, fui sentindo a seriedade do seu projeto, e logo passei a me assustar com a ousadia, quase aventura, de rejuntar o Brasil a Portugal. “Então, por favor, me responda, Presidente: Portugal aceitaria o Brasil de volta?” Ao que eu contesto com outra pergunta: O Brasil aceitaria voltar aos braços de Portugal?
O senhor sabe muito bem, melhor do que eu, que foi um principe português que rompeu os laços coloniais do Brasil com Portugal, o Pedro I de vocês, que foi o nosso rei D. Pedro IV. Quase sem um tiro, exceto algum confronto na Bahia, e sem que Portugal pudesse protestar, o Brasil soltou-se e agora é uma grande potência. Até me pergunto agora se, assumindo a coroa de Portugal, D. Pedro IV não se teria arrependido da declaração de independência do Brasile, antes que seu filho alcançasse a maioridade, cogitado da reunificação do Reino de Portugal, Brasil e Algarve.
Curioso como a proposta do senhor coincide com opinião exposta em 1821 por um representante do Brasil nas Cortes Portuguesas, precisamente Antonio Carlos Ribeiro de Andrada Machado e Silva, irmão de José Bonifácio de Andrada e Silva, ministro de D. Pedro I e defensor da independência. O senhor diz na correspondência que a proposta que está apresentando “é da maior importância, tanto para o Brasil quanto, por tabela, para Portugal”. E o que disse Antonio Carlos pouco antes da declaração de independência do Brasil? “Estou plenamente convencido que Portugal ganha com a união do Brasil, e o Brasil com a de Portugal, por isso pugno pela união”.
Como pode agora um presidente português recuperar o controle sobre o Brasil? O senhor poderia dizer que, tendo sido um principe português que retirou o Brasil de Portugal, um outro português no poder, no caso eu, teria tudo para reatar o Brasil. Ora, prezado senhor Agenor, nestes quase dois séculos, o Brasil mudou muito e cresceu demais, como demonstra sua carta, de modo que não pode mais voltar a ser um pedaço de Portugal.
Eu sei que muitos brasileiros estão a mudar-se para Portugal, e muitos outros gostariam de vir morar aqui no nosso pequeno e simpático país, e a descrição competente do senhor das dificuldades econômicas e sociais do Brasil parecem justificar esta saída. Mas os brasileiros, cheios de legítimo orgulho, jamais vão aceitar a substituição do seu hino pelo nosso, abandonar sua bandeira brios e mudar a moeda para o Euro. Eu sei que o senhor defende que hino, bandeira e moeda do Brasil sejam mantidos depois da fusão. Mas não vejo como um grande império possa ter dois diferentes símbolos nacionais.
Por outro lado, meu caro Agenor, ser europeu é muito bom, mas é meio chato, monótono. Quando estive no Brasil, eu senti a energia e a sensualidade desse povo, mesmo no meio da desgraça e dessa violência insuportável. Sabe o que temo? Atrelando o Brasil a Portugal, que o fluxo da população se inverta e os portugueses invadam o seu belo país. Aliás, o senhor, de passagem, levanta esta hipótese também.
Enquanto eu lia sua carta, lembrei-me do romance “Jangada de Pedra”, do nosso Saramago, não sei se leu. Saramago faz a Península Ibérica descolar da Europa e sair navegando e vagando pelo Atlantico. Sei que o senhor não está pensando numa fratura geográfica, com o Brasil descolando do continente americano e navegando até se fundir com Portugal. Mas me desculpe, porque não consegui evitar a comparação com o romance de Saramago. Vale ainda lembrar o que escreveu D. Pedro I a seu pai, D. João VI, rei de Portugal, Brasil e Algarve, um pouco antes da declaração de independência: “É um impossível físico e moral Portugal governar o Brasil, ou o Brasil ser governado de Portugal”. O impossível físico poderia ser contornado apenas se o vasto território brasileiro fosse recortado e empurrado na direção nordeste até ancorar no litoral português.
Entretanto, se vamos ser ousados e sonhadores, como a proposta da sua missiva, por que não inverter, empurrar Portugal para o Brasil, quebrando o seu elo com o continente europeu, livrando-nos também da Espanha e, depois de um movimento pelo mar, encostar Lisboa no Recife, o Tejo a juntar-se ao Capibaribe e ao Beberibe para formar o Oceano Atlântico? Sei que o senhor prefere que o Brasil seja europeu. Mas eu penso que seria muito mais interessante e disruptivo Portugal vir a ser parte de um grande país da América.
Na medida em que percebia a seriedade da sua proposta, fui saindo do meu próprio delírio e, caindo na real, como se diz por ai, comecei a ver as dificuldades de uma nova grande nação luso-brasileira, esta fusão de um gigante adormecido da América com uma pequena e moderna nação europeia. Como vamos recuperar nossa antiga colônia na América que, como sabemos, é hoje uma grande nação, muito maior que este pequinino país da Europa que tenho o privilégio de presidir? E será que nos interessa? Segundo sua exaustiva descrição, esta grande nação está bem complicada e bastante deteriorada, de modo que, se me animasse seguir sua sugestão, perderia logo o interesse pela impossibilidade que teríamos de, desde aqui, consertar este Brasil, que parece condenado ao fracasso. Nós já temos problemas demais no nosso Portugal, para não falar nas dificuldades da Europa, para nos meter no rolo dos outros (desculpe o recurso a uma gíria brasileira, mas penso que a sua informalidade me autoriza a tanto).
Sua descrição da complexidade do Brasil me despertou outro tipo de inquietação. De acordo com sua análise, de todo o Brasil, apenas o Nordeste ainda tem fortes raizes portuguesas. Esta seria, portanto, a única região pela qual poderíamos mesmo ter algum interesse, se é que vamos nos aventurar na sua proposta. Neste caso, e não estou sequer considerando que vamos fazê-lo, valia a pena apenas trazer o Nordeste para junto de nós. E o restante desse enorme país vocês poderiam dividir entre Itália, Alemanha, Japão e Líbano. Estranho, contudo, que foi o mesmo D. Pedro I, já imperador do Brasil, que esmagou a revolução separatista da Confederação do Equador, que corresponderia a este pedaço do Brasil que, como demonstra na sua carta, carrega a cultura portuguesa. Mas, sabe o senhor muito bem, a Confederação do Equador não queria nada tampouco com Portugal, não é mesmo?
Desculpe-me, caríssimo senhor Agenor, se divaguei demais e não consegui responder direto e claramente à sua indagação. Não sei se queremos, menos ainda se podemos, atender à sua sugestão. E duvido que os brasileiros compartilhem com o senhor este desejo de fusão com Portugal. Gostaria de combinar com o senhor uma ida ao Recife, para aprofundar a ideia e analisar as alternativas.
Atenciosamente,
Marcelo Rebelo de Sousa, presidente de Portugal.
Prezado Sérgio,
Daqui de meu retiro eciano na Póvoa de Varzim, ouvindo a algaravia das gaivotas que trazem alegria ao molhe sardinheiro da tarde da sexta-feira, acolho tua crônica como a maior homenagem que meu livrinho recebeu. No longo périplo que tenho feito para promovê-lo por terras lusas, o que os leitores portugueses mais me perguntam é sobre a reação do Marcelo. Na sequência, sobre como é que o livro vai se desdobrar, se é que terá uma sequência. Com sua largueza intelectual e amizade, você me deu as linhas mestras para levar a ideia de um segundo tomo mais a sério, por difícil que seja transformar um personagem real em ficcional. Espero podermos conversar pessoalmente sobre isso em breve.
Um abraço,
Fernando
Caríssimo Fernando, vamos aguardar com muita expectativa o segundo tomo com a resposta do presidente. Me alegro se, de alguma forma, provoquei seu entusiasmo pela continuidade do livro e, mais ainda, por poder partilhar deste seu exercício intelectual e literário. Abraços, Sérgio
Um magnífico artigo de Sergio C. Buarque. Mais um. Não é propriamente resenha de livro, embora possa funcionar como tal, para o leitor decidir se vale a pena ler o livro que contém a tese que ele analisa. Pelo artifício de resposta a uma carta, Sérgio Buarque aplica seus muitos conhecimentos da história e da sociedade brasileira para desconstruir uma peça de “science fiction” que ficou pairando no ar como um despropósito: a ideia de devolver o Brasil ao domínio de Portugal. E como sabidamente não sou de grupo nenhum (ainda que sofra influência de afetos e desafetos do Recife, não só na “Será?”), posso observar a maestria e a elegância com que comentarista e comentado jogam esgrima usando não floretes mas palavras.