Quarta-Feira, dia 24
Não sei se deveria dedicar tanto tempo ao noticiário impresso. Não bastassem as incursões pelas redes sociais (cada vez menos frequentes, é verdade), por que sacrificar momentos preciosos em que poderia me entregar às caminhadas, com a leitura dos jornais em papel que compro todo dia, para grande gáudio do rapaz do quiosque da rua Junqueira? Aliás, acho o “Público” o melhor jornal lusitano. Gosto imenso da edição domingueira do “Expresso” cujo suplemento é quase tão substantivo quanto seria uma edição completa de nossa “Piauí”, no Brasil. O “Diário de Notícias”, que só circula aos sábados, tem boas matérias sobre gastronomia e um ou outro bom articulista, inclusive Ruy Castro, que espicha os textos que escreve para a “Folha de S. Paulo” e os anaboliza com imprecações contra Bolsonaro, para alegria dos leitores locais. Por que não faço o mesmo com meus artigos de 5.800 toques que saem em “O Estado de S. Paulo”? Posso tentar a sorte no “Público”. Se não der certo, apelarei para a “Gazeta do Minho” ou o “Fofocas do Ribatejo”. Sendo o “El País” o melhor jornal do mundo, não será por conta de dois euros ao dia que me privarei do prazer de lê-lo. Aqui à Póvoa de Varzim não chega o “Le Figaro”, um bom companheiro das temporadas alsacianas. Mas tem o “Le Monde” que aparece depois das 14 horas em várias bancas, e que o Manoel deixa sempre guardadinho para não quebrar a confiança que lhe tenho. Junto ao título, escreve a lápis “brasileiro”. Como será que ele sabe? Se é quarta-feira, levo uma “A voz da Póvoa”, onde pontifica, de cabo a rabo, o brilhante jornalista José Peixoto, agora meu amigo. Trata-se do homem que revelou Leonardo Padura aos portugueses. Acostumei-me a ler no café Riba-Mar o “Jornal de Notícias”, do Porto, cuja sede visitarei no sábado para conhecer o Sérgio Almeida, que cobre a cultura, com o fito de ver se ele abre um pequeno espaço editorial para minha “Carta a Portugal”, que continua vendendo bem. Sérgio foi uma indicação do também jornalista Ademar Costa, este da Póvoa, que me ouviu no “Em Foco”, da rádio Onda Mar, onde dei ótima entrevista ao também brilhante Ângelo Marques. Foi graças ao Ademar, aliás, que apareci em um oitavo de página do “Correiro da Manhã”, a maior tiragem do País. No fundo, todo mundo é amigo de Bruno de Sousa, meu padrinho de letras ao Norte (já que Ronaldo Cagiano o é na zona da capital), e mais novo amigo de infância. Mas o que fazer se amo os jornais impressos?
Acho que tamanha devoção vem da infância. Quando recebia o “Diário de Pernambuco”, papai lia até os classificados. Fazia o mesmo com os jornais do Sul que nos chegavam no fim de semana. Depois canibalizava-os com critério. Dava o suplemento feminino domingueiro (com receitas sublinhadas a tinta azul) e a crônica social a mamãe. O caderno infantil era só meu, onde li as primeiras matérias de Geneton Moraes Neto, falecido há poucos anos. Mas o ponto alto era quando papai me chamava e lia em voz alta a crônica de Andrade Lima Filho. Que texto primoroso, quanta verve e veneno. Ou quando meu tio Ivan lia Lourenço Diaféria ou Alberto Dines, na “Folha de S. Paulo”. Se fosse escrever um dia, eu pensava, tentaria fazer alguma coisa similar, macaquear aquele estilo cheio de cores, condimentos e bem pensados subentendidos, concebidos para burlar os censores. Ou então, como aconteceu mais tarde, lavraria crônicas melancólicas no feitio daquelas de Paulo Fernando Craveiro, nosso vizinho na rua da Aurora, que parecia nutrir uma saudade sem fim de Londres. Por que saíra de lá? Mais parecia que para alimentar um memorialismo quase mórbido, senão patológico.
Almocei no Romero e comi um linguado enorme, acompanhado de grelos e batatas ao murro. Cada vez que eles dizem que vão me trazer uma guarnição de grelos tenros, tenho vontade de rir. “Não lhe apetecem os grelos, senhor Dourado?” Fico desconcertado. “Mas é claro que sim, diria que até demais, pode trazer”. “Se quiser posso salteá-los com uma manteiguinha? Ou com um bocadinho de azeite?” Desconverso. “Traga-os ao natural, só no vapor, bem durinhos.” Já me acostumei ao baixo sal da comida portuguesa. Eis uma conspiração em grande escala muito bem sucedida. Pois onde quer que se vá, percebe-se que a comida quase não leva sal. Robalos, pregados, sapateiras, mexilhões, corvinas, gambas e carabineiros – nada disso leva sal. Até o bacalhau pede uma pitadinha de sal de mesa. O pão então é totalmente insosso. Carnes idem. O feito é festejado como um ganho nacional e não há como tirar-lhe o mérito. Mesmo porque a gente se acostuma. Não tinha intenção de beber, tanto é que já tinha um litro de água Pedras Salgadas à frente. Mas mudei de ideia diante do linguado colossal e pedi uma garrafa de Planalto, um vinho verde que tomei geladinho, para não estragar um momento de celebração comigo mesmo. Que alegria maior pode um homem ter, quando só, do que comer bem? E qual a segunda maior alegria que pode ter, mesmo quando bem acompanhado? À noitinha, fui passear pela orla, ali entre o cassino e a roda-gigante. Todos se espantam quando digo que ainda não entrei no cassino. Sempre prometo que irei depois porque sinto que o edifício neoclássico é motivo de orgulho para a comunidade poveira. Mas eu não os frequento sequer em Las Vegas ou Mônaco. Acho que ali respira-se péssima energia. E energia ruim eu capto a grande distância.
À noite me recolhi cedo. Tenho sentido uns repuxões na barriga, uma espécie de câimbra do lado direito do diafragma. Sei que devo evitar esforços enquanto não operar essa maldita hérnia umbilical, mas também sei que estou adiando as coisas até ter que dar entrada de emergência num hospital e liquidar a fatura sem os tais exames prévios. É insano, mas é assim que funciono. Tarde da noite, depois de registrar estes apontamentos e terminar a leitura dos jornais, fui até a praia tomar um sorvete. Vendo as barraquinhas agora desertas de seus frequentadores até a manhã seguinte, penso nesses portugueses do Alto Minho que ano após ano acorrem à Póvoa para veranear. Soube que alugam as mesmas barracas de sempre e que ficam vestidos o tempo todo, mesmo sob o sol, como se estivessem a caminho da missa, com a única diferença de que ali se esparramam em esteiras e almofadões enquanto tagarelam e gesticulam com brio. O termômetro da farmácia marcava 19° quando subi. A Europa do Norte arde como uma pira. Aqui, temos essa bênção. Bruno acha que é ruim para a ocupação dos hotéis, pois os turistas estão inseguros em alugar-lhe os quartos. Amanhã vamos a Barcelos. Meu amigo visitará a avó em Avelós e eu ficarei na feira da cidade que é famosa pelo seu galinho, um símbolo nacional.
Quinta-Feira, dia 25
Já conhecia Barcelos. É uma linda cidade. Quando soube da feira livre, logo imaginei as alamedas de fruteiros e verdureiros a apregoar as maravilhas de seus melões, figos, pêssegos, nesperas, melancias, rabanetes, cenouras, coentros e couves. Imaginava que veria, como vejo nas feiras livres francesas, um mar de queijeiros, cada um a querer que provemos um naco de seu azeitão, uma colherada de um Serra, um improvável azul da Covilhã ou um requeijão do Alentejo. Na expectativa, muni-me de dinheiro miúdo no quiosque (onde posso abusar da boa vontade alheia), para lá chegar com moedas que trocaria por fatias de presunto de Chaves, rodelas de alheiras de Mirandela, nacos de farinheiras caseiras, chouriços fumados inteiros de Tomar e beliscos de fiambres de Coimbra. Na seção de peixes, teria uma aula sobre percebes, ouriços, berbigões, centolas, sapateiras, lavagantes, ameijoas, além de me maravilhar à vista de linguados, espadas, peixes-manteiga e os adorados rodovalhos. Se tudo desse certo, pararíamos em algum cantinho e acharíamos um gitano que nos fornecesse vinho e regaríamos a álcool nossa degustação de azeitonas e tremoços enquanto esperávamos a hora do almoço, preocupados em guardar o apetite para o momento mais solene do dia.
Mas nada disso aconteceu, hélas. A chuva fina que caía nos confinou a uma parte desinteressante da feira, toda ela feita de barracões onde se vendiam sapatos fedorentos, ternos baratos, confecção de quinta categoria e badulaques feitos na China, inclusive os altivos galinhos de Barcelos. Sobre a lona que nos encobria, vez por outra a água acumulada se derramava em banhos colossais sobre os passantes desavisados e tudo ficava por isso mesmo. Para não dizer que nada vimos do sabor local, passamos pela seção de aves onde centenas de patinhos de duas semanas dividiam um espaço demoníaco. Pintinhos novos, vendidos a sessenta centavos de euros a cabeça, esperavam aflitos os novos donos. Sobre uma bancada à parte, uma dúzia de galos e galinhas de pescoço depenado parecia temer a faca afiada que os levaria deste mundo. “Deves conhecer isto. É para as cabidelas”, disse Bruno. De imediato veio à baila o rito mais macabro de minha infância, que consistia no momento em que Quitéria me chamava para ver a preparação do almoço do sábado, lá em Garanhuns. Ela então corria pelo quintal à caça de uma galinha previamente visada e cortava o pescoço da infeliz numa enorme bacia branca que logo ficava vermelha. A galinha estrebuchava, mas Quitéria levava o ofício a ferro e fogo. “Bichinha teimosa, tu não quer morrer não, peste?” A certa altura trazia água quente e depenava-a até ficar como víamos nos frigoríficos. Então eviscerava-a e se metia a enumerar tudo o que lhe saía pelos fundilhos, como uma legista de capoeira. O cheiro era insuportável. Até hoje me faz evitar os becos de Kowloon, do outro lado de Hong Kong, onde escaldam-se patos a qualquer momento do dia. À mesa, meus primos disputavam quem ficaria com o fígado, a moela e o coração. Para mim, nesses dias de galinha à cabidela, faziam carne de sol com feijão verde. Ainda hoje, abomino o prato, só tolerando-o quando feito com com galinha d´Angola e, mesmo assim, em ambiente sofisticadíssimo, que nada rescenda ao terroir primevo da infância.
Da feira, fomos à igreja românica de São Pedro de Rates, a mais bela que vi até hoje em Portugal, só comparável no rigor da pedra bruta às que visitei na Armênia. No largo da vila, paramos diante do monumento de Tomé de Sousa, filho mais ilustre da cidade e ancestral de Bruno de Sousa, que se lhe assemelha imensamente. “E pensar que a igreja já estava aqui pelo menos 400 anos antes de teu parente fundar Salvador como nosso Governador-Geral.” Percebi que Bruno tem marcado orgulho desse parentesco. Mas ora, como não ter?
Por fim, chegamos ao café Santo Antonio onde o prato do dia era cozido. Adoro cozido português, mas prefiro-o fora de Portugal. Melhor dizendo, prefiro suas versões do Vêneto, de Castela, da Auvergne e do Nordeste do Brasil, o de Severina mais precisamente, a ex-cozinheira de minha mãe. Não estava mal, mas se resumia a nacos de chouriço e farinheira, grandes pedaços de fumeiro e a uma profusão de repolho branco. Claro, tudo com baixíssimo sal. Bruno riu enquanto me olhava comer. Acho que minha concentração no prato lhe pareceu engraçada. “Se estou calado, é porque sabe bem”, tranquilizei-o. Ele não continha a gargalhada. Naquele momento, percebi que ele é desses que comem para viver e estranham quem é diferente. Apesar disso, é gente boa. Em tempo: condimentos de mesa em Portugal têm que ser pedidos antecipadamente. Pedir pimenta, periperi ou mesmo sal pode acarretar um tempo de espera descomunal, e só chegarão quando os pratos estiverem frios ou findos.
Passei o resto da tarde trabalhando, mas os progressos foram discretos. À noite, fui ao cinema ver “Sinônimos”, do cineasta israelense Nadav Lapid. Como é que semelhante porcaria pode ganhar o tal Urso de Ouro? Como pode alguém se enredar numa egotrip delirante e estragar uma temática tão preciosa? Retratar um sabra que deixa Israel e renega a própria língua por não se alinhar às linhas mestras do pensamento vigente pode ser excelente mote. Mas o tema foi confiado a um péssimo roteiro, a um ator de terceira, e daí resultou uma narrativa tediosa, previsível e inverossímil, que não engana sequer um olhar menos treinado. Mesmo que o personagem principal fique estacionado na encruzilhada entre ser canastrão, esquizofrênico e/ou autista. Esperei até o fim que o filme acontecesse de verdade, mas saí do cinema Garrett sumamente irritado. Menos mal que em menos de dois minutos estava no meu quarto.
Sexta-Feira, dia 26
Trabalhei no apartamento pela manhã depois da primeira leitura dos jornais no café Riba-Mar. Lá encontrei alguns conhecidos que me saudaram. Em poucos dias, já sou bem conhecido aqui na Póvoa. Para tanto, ajudam a corpulência (meu peso é o equivalente ao de dois portugueses médios); meus modos que devem parecer-lhes extravagantes (tais como falar abertamente sobre o que me desagrada e pedir para que repitam as frases ininteligíveis, especialmente quando engolem as sílabas e trocam o “v” pelo “b”, ou vice-versa) e, é claro, a visibilidade que me deram os pequenos eventos culturais.
Almocei no Theatro para variar um pouco. Gosto dos pães sem sal, da tapenade untuosa e da brigada bem treinada em que se destaca Ludmila, a linda garçonete ucraniana. De mais, comer cercado de livros é sempre muito melhor, especialmente se não estão empoeirados. Na volta para o apartamento, tentei pela enésima vez falar com a Manuela, que é a organizadora oficial dos eventos culturais na cidade. Ela fica no cinema-teatro Garrett, logo bem ao lado de onde estou, e tem uma guarda pretoriana a protegê-la, dessas que fariam o séquito de um sequaz africano parecer uma tropa de soldadinhos de chumbo. “Quem gostaria de falar com a Doutora?” “Será que o senhor Dourado já marcou hora com a senhora Doutora Manuela?” “Poderia antecipar o que teria tratar com a senhora Doutora?” “Entenderia o senhor Dourado se soubesse que a Doutora está muito ocupada, visto que está a organizar tantos eventos, a ponto tal que está a trabalhar nas próprias férias?” É evidente que as pessoas que encenam o enredo se sentem elas também investidas de importância transcendental. Se a doutora Manuela encarna o sumo da importância, elas também não são nada banais.
Deixei-lhe um livro autografado na recepção. Algo me diz, lá no fundo, que a Dra. Manuela nem sabe que estive lá. Mas o que haveria eu de fazer? Emboscá-la na rua da Alegria e obrigá-la a vir tomar um café comigo? Um dia demiti um segurança da fábrica que não permitiu a entrada de uma visita, sem sequer me telefonar para avisar que alguém me procurava. “Mas quem era, afinal?” “Falava meio enrolado, era moreno, acho que queria emprego. Falei que a gente não estava contratando.” Ele barrara um importante (embora impertinente) cliente marroquino. “Com que direito? Quando foi que lhe pedi para triar quem me procura, rapaz?”
Às seis horas, Bruno passou com um amigo para irmos petiscar no que ele chama a parte Sul da cidade, onde ainda despontam casinholas baixinhas que constituíam o núcleo dos pescadores da Póvoa de Varzim. O amigo era ninguém menos do que um descendente direto do Cego do Maio, um pescador que se dedicou a salvar vidas dos companheiros de ofício em apuros em alto-mar. Atribui-se-lhe até 80 missões de salvamento em mar bravio que, pelas características, eram quase suicidas. Único poveiro condecorado com a “Torre e Espada”, o mais alto galardão nacional, vê-se que chegaremos em triunfo com semelhante escolta.
Fomos, portanto, ao “Chapeuzinho”, uma tasca sem grandes atrativos, onde um único homem falava por vinte, como se estivesse brigando. As frases eram isoladas, raivosas, e uma espuma branca ornava o canto de seus lábios, que mal escondiam a dentição precária. Gostando ou não, era ouvido. Tomamos uma, duas, três, quatro garrafas de vinho verde com o rótulo da casa. Petiscamos arraia frita, lula e bolinhos de bacalhau frios e borrachudos, como costumam ser os de Portugal, e a que logo nos acostumamos. Saí com Bruno quando a casa já ia fechar e resolvi pagar a conta. Não acreditei quando vi que eram só 15 euros. Embalados pela bebedeira, fizemos um tour infatigável. Em dado momento, fomos de carro à Casa Bacalhau onde perturbamos seu inquilino, o agora amigo César, para prosear e beber mais. Cheguei ao quarto embriagado e escrevi declarações de amor de que me arrependi amargamente.
Sábado, dia 27
Acordei ressacado. Todas as janelas estavam escancaradas e do restaurante ao lado vinha um cheiro de sardinha frita que pela primeira vez me pareceu enjoativo. Levantei o corpanzil com menos dores e penas do que normalmente sinto, o que significa que a coluna ainda estava anestesiada de tanta bebida. Zanzei pelo Centro sem saber ao certo por onde começar a jornada. Comprei os jornais e fui ao Franganito onde comi um bife de contra-filé com batatas fritas. Tomei uma Coca-Cola que, naquela hora, me pareceu a única bebida insubstituível do mundo. Então caminhei até a estação, passando pela praça da Almada onde vi o coreto enfeitado e o monumento a Eça. No trem, espalhei os jornais, sabendo que tinha uma boa hora pela frente até a Trindade, sede do “Jornal de Notícias”, onde encontraria o Sérgio Almeida.
No trajeto, lá por Vila do Conde, o trem perdeu os ares burgueses que trazia da Póvoa e foi tomado por uma turba heterogênea, no meio da qual uma mulher desequilibrada fingia falar ao telefone e disparava ordens para uma interlocutora imaginária. A voz dela chegava a Vigo, na Galícia. Uns tipos meio destrambelhados trocavam confidências sinistras. Tive a impressão nítida de que o hospício dera folga aos residentes. Sem saber por onde extrapolar a raiva de já não poder ler a boa matéria sobre Boris Johnson devido à cacofonia reinante, cismei com um rapazola que, diante do comparsa, tinha os pés apoiados na parede do trem. “Tira o pé daí, pá. Não estás em casa”. Ele me olhou com ódio. “Não é minha mãe para ralhar-me.” Fixei o olhar e ele baixou os pés com resmungos. Os dois foram então para o fundo do vagão e me fulminaram com ódio. Saltaram em Sete Bicas e me deram o dedo da plataforma. Pensar que as pessoas têm medo desses delinquentes borra-botas. Se conhecessem os nossos…
Cheguei às quatro da tarde ao “Jornal de Notícias”, mas o vigilante disse que Sérgio ainda estava em Serralves. Procurei um lugar para beber água ou qualquer coisa, mas tudo estava fechado ali pela Trindade. A conversa foi breve, mas sei que dela sairá boa coisa. Sérgio é afável, um pouco melancólico e já foi publicado no Brasil. Voltei para a Póvoa e passei um resto de dia bastante inócuo. Na falta de melhor, finalizei uns capítulos do novo livro e mandei-os para a leitura crítica de Homero.
Domingo, dia 28
Até que ponto temos o direito de escrever as palavras como elas mais nos agradam? Sei que é pormenor de somenos, metafísica de desocupado, mas hoje cheguei à conclusão de que muitas vezes estou mais à vontade com algumas formas vigentes aqui em Portugal do que com as que são corriqueiras no Brasil. Tome-se por exemplo o caso dos meses. Aqui todos são escritos com maiúsculas, até Fevereiro, que é o mais curto deles. O mesmo se aplica aos dias da semana e às estações do ano. Primavera para nós só é referida com maiúscula quando falamos da de Praga, de 1968. Aqui todas são distinguidas com o galardão, mesmo que se trate do mais inclemente dos Invernos. Para mim, enxertar essas maiúsculas aqui ou acolá não provoca o efeito de grito, apontado por alguns revisores de texto. Isso se deve a que me acostumei desde cedo aos substantivos em alemão, pois todos eles – mesmo os comuns – são escritos com maiúsculas. Bier (cerveja), Haus (casa), Uhr (relógio) estariam errados se grafados com minúscula, mesmo no meio das frases.
Em todo final de viagem, certo é que o pavio encurta drasticamente. Munido dos jornais, voltei ao Romero para almoçar bem. O salão estava lotado, mas não tardaram a me conseguir uma mesinha de canto. Para sair um pouco do circuito marinho, aceitei a sugestão da vitela estofada, que, sinceramente, achei excessivamente barata no menu. Para esticar o almoço, pedi um caldo verde, que lá fazem muito bem. O garçom era um domingueiro amador, desses que eles laçam em família para dar vencimento ao movimento do fim de semana, quando as casas de pasto locais lotam. Mas era um néscio completo. A sopa normalmente já está pronta e não tarda quase nada a chegar. Pois bem, trouxe-me o queijo de azeitão, as azeitonas sem sabor e o pão de saloio sem sal. Depois de longa espera, chegou com a vitela. “E o caldo verde, pá?” Tinha esquecido. Ataquei a vitela de má vontade e achei-a gordurosa, além de fria. Dei-lhe um esporro colossal, a que eles aqui não estão mais acostumados, e a que os garçons começam a ser suscetíveis inclusive no Brasil, terra de melindrosos. “Promete-me que nunca mais virás fazer um bico de garçom, pá. És uma negação, francamente”. Mesmo assim, ainda comi o tarte de bolachas, um sorvete com biscoito que estava muito bom.
À noite, saí para jantar no japonês onde por 15 euros come-se todo tipo de sushi, sashimi, grelhados e fritos. A qualidade é entre média alta e boa. Só o missoshiro é péssimo. É engraçado que se percam justamente no mais fácil. Tarde da noite, Bruno veio se despedir.
Segunda-Feira, dia 29
Dormi pouco, é verdade. Às sete da manhã já atravessava a cidade rebocando minha bagagem sobre rodinhas, e o ruído tamborilante ressoava pelas pedras do calçadão deserto. Peguei o metrô de superfície até Campanhã, o que levou uma hora de relógio. Às nove e quarenta, embarquei no alfa-pendular para a gare do Oriente, em Lisboa. Pouco lembro da viagem, exceto que li o que faltava dos jornais e que conversei até Aveiro com um ex-tripulante da TAP. Às 13 horas, já na capital, não sabia bem o que fazer. Atravessei a rua e entrei no shopping Vasco da Gama. Meu livro estava bem exposto na FNAC. Arranchei-me no restaurante Serra da Estrela e só ao fazê-lo lembrei-me que a qualidade da simpática rede tinha despencado vertiginosamente, e que eu prometera que não mais iria frequentá-la desde que comera mal dois meses antes, no shopping Amoreiras. Mesmo assim, pedi o arroz de pato que veio seco. O garçom ainda trouxe uns petiscos de torresmo suculentos, mas achei prudente recusá-los. A bem da verdade, salvou-se a sobremesa, uma salada de frutas frescas onde tudo era delicioso, salvo o ácido kiwi, meu novo inimigo jurado.
No aeroporto, esperei até que o guichê da Cabo Verde abrisse, o que me valeu outra hora de leitura. Passei direto para o portão, não sem antes comer um prego e tomar uma cerveja para não me arriscar a depender do menu da companhia aérea. Decolamos no horário e passei a viagem de quase 4 horas até Sal de nariz enfiado em “Tóquio”, um diário de viagem ao Japão de um diplomata português que lá chegou apenas quatro meses depois das explosões nucleares. Um verdadeiro primor de escrita culta. Na cabine do 757 de 30 anos de uso, os comissários fizeram todo tipo de lambança. Sem o menor traquejo para servir naqueles moldes, cometeram erro após erro. Envergonhados, e não sabendo desculpar-se porque nessas horas a auto-estima vai a pique e eles se sentem desmoralizados aos próprios olhos, tornam-se irritadiços e autoritários. Alguém deve ter-lhes dito no treinamento que os passageiros precisam ser tratados como crianças de jardim da infância. Nesse ponto, as semelhanças entre Cabo Verde e Brasil são acachapantes. Com a agravante de que por lá os tripulantes de cabine devem ser indicados segundo critérios de apadrinhamento político, como é de praxe nas estatais. Todos 50, salvo os pilotos. Sim, digo 50 porque a empresa só tem dois aviões arrendados, ademais de um terceirizado, ainda pintado como sendo da companhia aérea da Islândia.
Na escala em Sal, os atendentes de terra corriam em todas as direções e tratavam os passageiros como gado. Não pela rudeza, mas com a energia e a veemência de quem lida com meninos rebeldes e/ou debiloides. Entre eles, quando nervosos, falam um dialeto ininteligível. A escala teve o mérito adicional de ser breve. Tempo bastante para que os passageiros recarregassem seus celulares e cuspissem redundâncias para os ausentes, já que os presentes no mundo virtual não existem. “Gercicleide, se Deus quiser, chegaremos ao Recife à meia-noite. A aeronave já está aqui.” Adoro aeronave. Quem inventou essa cafonice? De fato, chegamos à hora aprazada. Sobrevoamos João Pessoa, e vinte minutos depois, já estávamos nos Guararapes.
Terça-Feira, dia 30
Cheguei de madrugada ao Recife. Entrei em casa e ainda pensei em trabalhar até o nascer do sol para só depois dormir. Mas o sono, esse meu grande aliado, chegou mais cedo do que eu esperava, graças aos moderados desconfortos aéreos e a uma jornada que, na verdade, já começara mais de 25 horas antes, lá na Póvoa. A nota chata da chegada era esperada. A oftalmologista disse a mamãe que já não havia nada a fazer para que recuperasse a visão do olho atingido pela mácula. Desde o dia 17 de junho, quando isto foi aventado por um médico amigo, ela ficou muito animada, embora eu não me fiasse minimamente no novo prognóstico. O que dizer? A nota boa foi que o dia todo foi feio, como se costuma chamar aqui os de céus nublados, aqueles em que os dias são ligeiramente mais frescos. Não pode haver dia bonito sem sol, o que é um conceito originalíssimo no meu glossário. Saí então para resolver coisas de minha pequena vida. À noite, vi uma atuação convincente da atriz Grazi Massafera numa estréia de novela. Depois adormeci. Envelheço.
Quarta-feira, dia 31
Hoje é o dia em que a passadeira de roupa vem trabalhar. São delícias do Recife, coisas de que já não se tem muita notícia em São Paulo. Resolvi que trabalharia pela manhã em casa. Com um canto de olho, acantonado na sala, percebi que a passadeira não trabalhou sequer dez minutos contínuos. Fez sim pequenos intervalos para conversar com a cozinheira e para discutir sobre temas de família, acho eu. Não é que conversem em voz baixa, inaudível, mas quase não consigo entender o que dizem, salvo pelas palavras avulsas que deixam adivinhar o contexto. Uma não sabe ler, mas é muito esperta. A outra tem também um olhar vivaz, mas atropela as sílabas. Todas as frases são curtas, os relatos não se encadeiam. Percebo que falam pelos silêncios que observam nos intervalos enquanto se encaram – como as aves canoras. Que diferença do amigo que verei logo mais no almoço, que narra até a falta do que contar.
Foi este amigo quem me disse que eu lhe parecera mais empolgado com o livro antes de ir para Portugal do que ao voltar. Procedia? “Mas é claro, rapaz. Sou do chamado exército de desbravamento, não me seduz ser do exército de ocupação. Gosto de descobrir terras novas, fincar a bandeira na areia, confraternizar com os locais e zarpar rumo às águas desconhecidas. ´Carta a Portugal` não precisa mais de mim, é um filho emancipado.” Depois do almoço, paramos na avenida Boa Viagem e ficamos a contemplar o mar. “Preocupado com alguma coisa?”, perguntamos em uníssono. Ele me explicou as razões que o levavam à inquietação. “Eu só falo das minhas se formos tomar um café.” Então contei-lhe dos vinte dias em Portugal, dos bons momentos da Póvoa, dos projetos, dos anseios e ansiedades.
Nessa hora, uma barra escura toldou o horizonte lá pelas bandas do Pina. “Vem chuva por aí?” “Talvez não, talvez não. Pode ser só da época. Vamos lá que eu te deixo em casa.” Subi para trabalhar. À mesa do jantar, bacalhau com arroz branco. Foi um jantar de longos silêncios. Ao final do primeiro tempo do jogo do Flamengo contra um time equatoriano, adormeci. Amanhã, pensei, começa agosto. Do jeito que o Brasil vai, será que meses especialmente agourentos ainda se diferenciam dos demais?
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Linda ilustração!
Escritor (este que vos escreve) emocionado com a surpresa.
Nem eu sabia que aí estava o âmago.
Abraço,
Fernando