Recentemente falei na Academia Pernambucana de Letras sobre Marcel Proust, mais especificamente sobre “À sombra das raparigas em flor”, cujo aparecimento completou cem anos em junho deste ano. Sobre o genial escritor francês, autor do mais longo romance já escrito — “Em busca do tempo perdido” —, costumo dizer que há uma espécie de “demanda reprimida”, embora (ou por isso mesmo) também haja um pêndulo proustiano que há décadas oscila entre o submergir e o ressurgir. Pelo menos no Brasil.
Há uns sete anos, um grande jornal carioca estampava que Proust estava na moda no Rio de Janeiro, assim como esteve em outros anos do século passado. Lia-se Proust ou, pelo menos, citava-se Proust, o que é sempre elegante, mas nem sempre verdadeiro e orgânico. Dirão que o que chamo de “demanda reprimida” também poderia se referir a outros grandes nomes da literatura: Machado, Flaubert, Eça de Queiroz e muitos outros que vão da “lei da morte se libertando”, como diria Camões. Verdade. Mas, no caso, quero me referir ao genial francês de quem se costuma dizer que não tem leitores, mas verdadeiros devotos. Incluo-me entre estes, ainda que o verniz do pitoresco me deixe um estranho e falso brilho…
Proust em sua imensa obra escreveu, não sem razão, que os “nomes são desenhistas fantasiosos” e que por isso, não raro, nos divorciam da verdade ou nos levam para longe dela. Com o próprio Proust se dá o mesmo. Não preciso fazer uma pesquisa aprofundada para saber que se associa ao seu nome, do ponto de vista mundano e, portanto, do lugar-comum, uma teia de outros nomes que vieram se colar à sua pessoa e, por metonímia, ao seu grande romance: a saber: aristocrático, burguês, refinado, alienado (Sartre, que não chega a seus pés, cantou essa pedra) e por aí vai; por outro lado, é o autor da memória, da crônica “social” da Belle Époque, o ser enfermiço e distante do mundo real, etc., etc. Escusado dizer que são reducionismos de quem, muitas vezes, ouve cantar o galo sem saber aonde. Há, nessas visões de Proust, apenas meias-verdades, e o nosso autor é seguramente muito mais do que se imagina. Naturalmente, num simples artigo não posso provar por quê, mas não custa, em sua defesa, lembrar alguns pontos essenciais de sua obra.
Um primeiro ponto a considerar é que Proust criou uma já longa posteridade. Sua obra já pode ser considerada centenária. Os cem anos de sua morte chegarão em 2022; o sesquicentenário de nascimento, em 2021. Em todos os quadrantes do planeta, ele é lido e amado. Muitos de seus especialistas nem são franceses. Obedecendo à sua própria diretriz, ele “jogou sua obra no futuro”. Os pósteros, e não os coevos, o estão entendendo melhor. O mais longo romance se tornou para muitos o melhor romance. Sem falar que “Em busca do tempo perdido” é muito mais que um romance, é uma obra única, totalizante, tão permeada de ambição enciclopédica e idealismo quanto de sabedoria. Proust criou símbolos e mitos. Sua obra afirma a potência da literatura, abrange e prevê os pragmáticos apressados e os medíocres que não percebem sua ironia (Cf. Richard Rorty, “Contingência, ironia e solidariedade”) e sua crítica aos que não pensam nem refletem e que tanto sabem do real quanto um peixe sabe da filosofia de Descartes.
Falar de Proust numa hora dessas!, pensarão muitos, como aquele interlocutor imaginário do soneto de Bilac: “Ora, direis, ouvir estrelas!”. Mal sabem que Proust levou para seu grande livro o famoso “caso Dreyfus”, penosamente protagonizado pelo capitão do exército francês Dreyfus, que, como se sabe, era judeu e que foi acusado de alta traição (supunha-se que passara dados secretos para os alemães). O “affaire” dividiu a França e fez brotar um nacionalismo tão exacerbado quanto pueril. Uma rachadura que, para alguns, até hoje perdura banhada no mais puro antissemitismo. Como no Brasil de hoje, uma polarização tremenda tomou corações e mentes. Proust, na esteira de Zola (autor do célebre manifesto a favor do injuriado capitão francês, “Eu acuso”), tomou o partido de Dreyfus, assinando o manifesto e atuando com entusiasmo pela causa da libertação do militar injustamente preso, vítima de um processo fraudulento, como posteriormente ficou comprovado. O tema, bem se sabe, atravessa o romance.
Da mesma forma, está presente na “Busca” a Primeira Guerra Mundial, um conflito de proporções nunca vistas até então, o que, segundo alguns críticos, dão ao final do seu livro um tom épico… Os que pensam que Proust é sinônimo de devaneios evanescentes esquecem que em seu livro universal há um Proust “sociológico”, tão importante quanto o é Balzac com sua “Comédia Humana”. Tão importante e até superior, pelo muito de crítica que associa a suas reflexões e seus comentários.
Falar de Proust numa hora dessas! Há também outros nomes e temas a que Proust deve ser associado. Aqui alinhavo e alinho: sexo, sadismo, agnosticismo, ciências, medicina, arquitetura, fotografia, inovação, ironia, humor, sabedoria. Proust tem muitos tentáculos; quem sabe um deles não pega você. Fica a dica.
Magnífico. Muito preciso.