Clemente Rosas

Prédio da SUDENE.

IX – General Nilton Rodrigues

Quando meu conterrâneo Cássio Cunha Lima – o homem que, sem me conhecer, me nomeou Procurador Geral da SUDENE – resolveu, no final de 1993, deixar a superintendência da autarquia para retomar sua carreira política, comentou-se que o presidente Itamar Franco “estava inclinado a nomear um militar para substituí-lo”.  E logo compreendi a circunstância de tal decisão: a visão mesquinha dos políticos nordestinos naquele momento, que viam ali apenas mais um posto a ser ocupado por um correligionário, mesmo sem qualquer perfil que o credenciasse para tal.  Entendimento este depois confirmado pelo próprio escolhido, ao me confiar que recebera apenas uma recomendação do presidente: não deixar a política imiscuir-se na instituição.

O General Nilton Moreira Rodrigues, logo em sua primeira reunião com o segundo escalão da SUDENE – diretores, procurador geral, auditor, assessores – disse claramente a que vinha, e como trabalharia.  Não pensava em substituir ninguém e trazia apenas três assessores: coronéis reformados, que se revelaram ótimos colaboradores, mantendo conosco uma relação de mútuo respeito.  E alertava para um importante princípio: não faria nada que não fosse rigorosamente dentro da lei.  Pois das vezes em que, movido pelas mais nobres razões, arriscara afastar-se desse caminho, não se havia dado bem.

Em resposta, acho que fui o primeiro a falar, nessa reunião.  E disse da minha satisfação em ouvir tal discurso, pois o meu papel na procuradoria era, muitas vezes, o de dizer o que não podia ser feito, contrariando frequentemente interesses de autoridades externas ou de companheiros de trabalho.  Portanto, sentia-me à vontade como seu colaborador.

E assim aconteceu, ao longo dos mais de quatro anos de sua gestão.  Houve, a princípio, incompreensão e reações de funcionários contra regras de disciplina, as mais justas e elementares, como o registro de presença, ou o encerramento de contratos de trabalho por prazo determinado que já não se justificavam, e vinham sendo prorrogados por puro paternalismo.  Uma encenação grotesca foi promovida pela Associação dos Servidores por ocasião do almoço, no refeitório: um indivíduo fantasiado de demônio, com chifres e rabo, representando o superintendente, a perseguir e chicotear outro, maltrapilho, que seria o servidor da casa.

Sabem qual foi a atitude do General, diante de tal provocação?  Simplesmente a desconsiderou.  Tinha confiança de que o tempo provaria o acerto da sua maneira de administrar, e não era homem de reações passionais.  Aos poucos, os mais recalcitrantes foram compreendendo e aceitando o novo sistema gerencial sob o qual todos passaríamos a viver.

Como não nos cabia, como civis, prestar-lhe continência, todos o cumprimentavam apertando a mão que ele oferecia, sistematicamente, a qualquer interlocutor.  Almoçava no restaurante da casa, e na volta, quase diariamente, passava no posto bancário, onde, se fosse preciso, entrava em fila, sem exigir qualquer privilégio no atendimento.  Reunia o seu segundo escalão duas vezes por semana, esperando de todos opiniões francas e objetivas.

Era comum aos diretores da SUDENE, e sobretudo ao seu superintendente, receber brindes das empresas beneficiadas com os incentivos fiscais geridos pela autarquia.  Houve mesmo alguns abusos, com “kombis” cheias de caixas de uísque, ou de perus de Natal congelados, chegando às portas do edifício.  E o General determinou que todos os presentes fossem recolhidos, e sorteados entre os servidores aniversariantes de cada mês, em reunião festiva no salão nobre do Conselho Deliberativo.

No tocante à liberação de recursos de incentivos fiscais  que, a partir do momento em que estes se foram tornando escassos, provocava uma verdadeira romaria de empresários e políticos ao Gabinete da Superintendência, estabeleceu critérios de prioridade rigorosamente impessoais para hierarquizar as demandas.  E a romaria cessou.

Diante de parlamentares, governadores e ministros do Governo Federal, mantinha-se respeitoso, mas insubmisso.  Caso emblemático foi o de um governador nordestino que tentou impedir o cancelamento, pelo Conselho Deliberativo da autarquia, de um projeto irregular de um ex-governador, e dele recebeu a seguinte recomendação:

– O senhor pode pedir vistas ao processo, mas isso, pelo Regimento do Conselho, só retardará o seu julgamento por um mês.  Ainda assim, se o fizer, vou pedir a palavra e dizer a todos por que estamos cancelando o projeto.  E isso vai ficar mal para o senhor…,

E o governador desistiu da inglória empreitada.

No processo de saneamento do sistema de incentivos, com o cancelamento dos projetos irregulares ou inviáveis, a promoção de execuções fiscais para retorno dos recursos liberados, e notícias-crime ao Ministério Público Federal quando fosse o caso, tive participação intensa, pois os empresários atingidos recorriam à Justiça, para impedir os cancelamentos ou forçar as liberações.  Foram muitos os casos em que a procuradoria teve de atuar no Juízo Federal, para garantir a onda moralizadora.

Lembro-me de um caso envolvendo empreendimento cearense que se tornou inviável por circunstâncias de mercado externo, fora do controle dos seus titulares.  E estes, inconformados, queriam forçar a SUDENE a continuar liberando os recursos.  Ora, sendo o benefício fiscal do Fundo de Investimentos do Nordeste – FINOR um apoio ao investimento, e nunca um subsídio ao custo, continuar destinando seus recursos a um projeto com rédito negativo – e já devendo ao INSS, o que é constitucionalmente interdito – seria injustificável.  Mas um desembargador federal cearense concedeu uma liminar para que isso fosse feito.

Agravamos da decisão para o plenário do Tribunal Regional Federal, conseguimos o compromisso do desembargador de manter os recursos em conta do Juízo até o julgamento final, e convenci o General, indignado, a autorizar o depósito dos valores, para cumprir a liminar.  Quando, enfim, a sessão de julgamento do Agravo Regimental foi marcada, falei para o General:

– Já me inscrevi para fazer a sustentação oral do nosso recurso.  Mas o senhor vai comigo, para prestigiar o julgamento.

E assim foi feito.  A presença do General foi solenemente anunciada e, após as intervenções das partes, dos oito desembargadores federais que compunham o pleno do TRF, seis votaram pelo provimento do Agravo.  O General os cumprimentou, requeremos, no dia seguinte, a devolução do depósito feito, e o dinheiro retornou aos cofres do FINOR.

Guardo dos meus anos de trabalho com o General Nilton as melhores lembranças.  Deixou a SUDENE por achar haver bem cumprido a sua missão, mas, na verdade, estava também desgostoso por sentir que a instituição não recebia do Governo Federal a atenção e o apoio merecidos.  Reformou-se, dirigiu, por três anos, o SEBRAE em Alagoas, sua terra, e agora “cultiva o seu jardim”, em sossegada praia daquele Estado, atuando ainda em uma ONG de apoio a pescadores e ao povo humilde de sua vizinhança.

Ao longo de minha vida, trabalhei, em várias funções executivas, tanto em empresas privadas, grandes ou pequenas, como nos níveis estadual e federal da administração pública.  Espero não magoar meus antigos superiores ao dizer que o General Nilton Rodrigues foi o melhor modelo de chefe que encontrei.  Íntegro, sem nenhuma vaidade, eficaz e, surpreendentemente, democrático.  O único que vi voltar atrás de uma decisão já tomada, quando convencido, por um subordinado, de não ser ela a melhor alternativa.  E absolutamente infenso a bajulações: não queria áulicos, queria auxiliares competentes e desassombrados.

Como já aconteceu, no passado, com outros militares que comandaram a autarquia e foram por ela “conquistados” – ao exemplo do General Euler Bentes Monteiro – o General Nilton também se encantou com a SUDENE.  Ao ponto de comparar os quatro anos que lá passou aos quarenta dedicados ao Exército.  E nisso foi plenamente correspondido pelo seu corpo técnico.  Em sua despedida, publiquei no Jornal do Commercio (05.05.1998) o artigo “Boa Sorte, General”, em que lhe prestei os agradecimentos e as homenagens da casa.  Como agora o faço, mais uma vez, ao incluí-lo em minha galeria pessoal de notáveis, com todas as honras.