A mulher do sétimo andar, à mesa redonda com tampo de mármore nu, sem toalha, via o quadro magnífico de sua casa: o Oceano Atlântico em suas cores em azul marinho ao fundo, arredondado como a forma da terra; e em verde esmeralda, manchado de mais escuro em faixas traçadas pela sombra das nuvens, ou pela proximidade dos arrecifes cinzentos. Mar brilhante em dourados de sol em movimentos de dança saltitante, às sete horas de uma manhã de verão. De onde estava, não chegava à sua vista o rendado branco do quebra mar. Sabia que a grande novidade da sétima arte fora precisamente esta: poder mostrar, diferentemente da pintura e da fotografia, o movimento. Uma folhinha ao vento. O mar em seu incansável impulso de ir e vir.
As cortinas de vidro e de “voile” estavam inteiramente abertas e o vão do quadro naquele momento media 2,10 por 1,50. As folhas do pé de jasmim, de verde novo, principiavam a se enramar nos corpos dos dois peixes de ferro que se beijam. Ao lado, a cena de um Café na Avenida Guararapes no Recife de janeiro de 1964, um bico de pena de José Hamilton. Abaixo desse quadro, ela via as folhas, também em verde menino, do tamanho de muitas palmas de mãos infantis, levemente balouçantes à brisa que chegava diretamente do Oceano, sem nenhuma intermediação da avenida, pois a Sinfonia número 21 do jovem Mozart abafava o som infernal de seus motores que, àquela altura do dia, já silenciara o mar.
Sabia que o pé de hortênsia, plantado em vaso de barro por sobre a cerâmica de Francisco, não demoraria a empurrar o braço do sofá e a mesinha de madeira velha, mineira, logo fosse se espalhando em busca do sol, que limitava seu tempo na sala do amanhecer às 10:30 da manhã. Na mesa baixinha estava a irmã mais nova da hortênsia, mais exposta ao sol, mais florida. A do chão era mais folhas e uma única e enorme flor. As duas plantinhas, orgulhosas de suas cores, exatamente as mesmas cores do céu azul com as nuvens brancas, esse céu do Recife.
A hortênsia da mesa tinha por companhia, além do pé de jasmim, que crescia a olhos vistos, quase a cada dia, abraçando-se carinhosamente ao casal de peixes de ferro que não param de se beijar na boca, dia e noite; um terceiro vaso de barro. Este, com um pé de beijinho que, sendo o mais florido quando se mudou do Brejo de Gravatá para o Pina, estranhou os ares praieiros e perdeu todas as flores em encarnado sangue. Porém, com cuidados de mãe, como estivesse em uma incubadeira, despontava dos galhos ainda viçosos as primeiras folhinhas verdes, minúsculas.
Perguntara-se a mulher: como acomodar aquelas plantinhas, acostumadas às noites frias do Brejo na Serra da Borborema, ao sol por todo o dia, ao sereno das noites, às chuvas e chuviscos, ao orvalho das madrugadas… Onde colocá-las, trepadas no sétimo andar, sujeitas à brisa forte do mar, sem o orvalho nem o sereno, e com o sol limitado à primeira parte da manhã? As outras plantas da casa, a palmeira ráfia, o “comigo ninguém pode”, e outra que, de cima da cristaleira, enramava até o chão; todas só careciam de água uma vez por semana. Olharam invejosas as novas habitantes e chegaram a praguejar: ah! ah! vão ver agora o que é bom! Vamos ver quanto tempo vão segurar esse colorido afrontoso, aí, no lugar mais nobre da sala, olhando o mar, com direito a banho de sol todo dia. Pensam que isso aqui é o Brejo? Vão ver só.
Mas, se um pé de beijinho se recuperava a duras penas na incubadeira, seus três irmãos, plantados ao pé do vidro, em cima da mesma pedra produzida por Francisco, reluziam em suas cores trazidas do Agreste de altitude. Um de flores cor de laranja, o vizinho de flores brancas e o terceiro em rosa pink.
Um cesto de cipós, no mesmo chão dos beijinhos, abrigava mais um pé de jasmim, bem ao lado de uma natureza abstrata em verdes, amarelos, cor de terra, cor de vinho, de Humberto Magno. Talvez o melhor trabalho desse pintor pernambucano, vendido num leilão para eleger algum candidato do PCdoB, encimado naquela parede pintada em cor de uma talhada de jerimum maduro, por mais dois bicos de pena de José Hamilton. Enramará esse jasmim, quando mais crescidinho, por cima desses quadros? É o milagre que esperava a mulher do sétimo andar. E devaneava: conseguirão esses jasmins, longe de seu habitat brejeiro, florir um dia, perfumando toda a sala nas tardes e noites do verão?
O tapete da Casa Caiada, desde a chegada dos imigrantes do Brejo, deixando sem uso a cortina de tecido que o protegia da claridade matutina, sabe que desbotará. E a mulher do sétimo andar matutava: que importa se o tapete perder um pouco das cores? Quem sabe se estarei viva daqui a dez anos? Tem fé em Deus e em Oxalá que sim, Eles serão generosos e lhe deixarão chegar a mais vinte anos de lucidez e saúde, mesmo que para isso precise cada vez mais de cuidados redobrados que lhe tomam tanto tempo, que às vezes se perguntava como lhe sobrava tempo, outrora, para trabalhar fora de casa?
Ela era setenta e quatro. Apesar de amar a língua portuguesa, pela sua riqueza, gostava mais, contudo, da identidade dos anos vividos na língua inglesa. How old are you? Pergunta-se a uma criancinha que mal começou a caminhar sozinha. E ela, mesmo que não saiba ainda falar direito, aponta um dedinho, I’m one year old. Afinal, como tanto já se disse, somos um rio que corre e já não somos agora o que fomos ontem nem o que seremos amanhã. Por outro lado, talvez aos oitenta e quatro já nem fosse mais seguro ter no chão da sala tapetes, nos quais se pode tropeçar e cair. Osso de velho não cola fácil como de criança. É preciso saber ser setenta e quatro, como será preciso saber ser oitenta e quatro, noventa e quatro… E saber finalmente quando chegar a hora.
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