O Coringa não é só um filme assustador. É também pintura frenética. Acompanhada de concerto belo e atordoante de celo. O conjunto da obra do diretor, Todd Philips, captou o espírito do drama contemporâneo. Encapsulou o tempo social na digital do cinema.
Por isso, Gotham City está nas máscaras de palhaço usadas pelos manifestantes em Santiago do Chile. Está no sentimento de revolta com a desigualdade que abala capitais europeias. O Coringa virou metáfora de nossa época. Estilhaçada pelo medo do desemprego. Acossada pelo narcisismo. No qual parcelas da elite ignoram a pobreza marginal da sociedade.
A obra é um primor de concepção fílmica. Em que se superpõem três subtextos agudos e convergentes: o distúrbio mental do Coringa; a relação niilista na grande metrópole; e a falência fiscal do Estado atestada na falta de serviços públicos.
O Coringa recebeu em Joaquin Phoenix lapidação a ouro. Não apenas na expressão magnética, que ele exibe, pelo desgaste mental. Como no bailado combalido e preciso que ele executa. Num corpo magro, aparentemente frágil, que resiste aos impactos da violência sem freio. Um pássaro ferido.
O filme mostra como as relações humanas estão deformadas na aridez das grandes cidades. As pessoas estão enclausuradas em suas próprias necessidades. E obsessões. Não conseguem sair de si. E tocar o outro. Arrepiar-se com a alegria do outro. Emocionar-se com a tristeza do outro. Empatia amputada.
O filme exibe também a limitação financeira do Estado no século 21. Na suspensão de serviços de assistência social. No corte dos remédios que garantem a sanidade mínima do Coringa. Na paralisação da coleta de lixo da metrópole. Na desigualdade transparente que deflagra a insurgência em Gotham City. Como em cidades da Europa e da América Latina. Jardim devastado.
Gotham City é extração metafórica de Nova York, Hong Kong, Budapeste, Ancara, Caracas. Consequência de política sem visão social. Implementada, nos anos 80, pela dupla Tatcher/Reagan. O resultado de ausente política socialmente redistributiva é este. Uma sociedade cronicamente desigual.
Por sua vez, a arte é transcendente. E decanta a realidade. Quando a manhã nega o sol, temos o azul da tarde. A utopia é um ponto no horizonte. Onde se acha o arco íris da invenção. E onde o cineasta encontra inspiração para contar a história do mundo. Com talento.
Texto brilhante, amigo Luiz Otavio!
Luiz Otavio, você mostra conhecer aqui bastante da chamada gramática do cinema. Fiquei até com vontade de rever o filme.
Um abraço,
Fernando
Resenha linda. Só vi agora, quando apareceram as discussões sobre o Oscar.