Nos primeiros dias de dezembro de 2018, a mulher do sétimo andar embainhou a peixeira, muniu-se dos poderes do santo guerreiro São Jorge/Ogum, que Oxum convoca quando dele precisa, quando sabe que haverá contenda e seus poderes são de sedução, não de luta.
Havia recebido um convite para o lançamento de um livro. Havia nele uma entrevista sua, concedida para outra finalidade. Disso só soube na véspera do lançamento, fato consumado, quando o organizador do livro lhe telefonou convidando-a e comunicando, com alegria, a inclusão de sua entrevista.
Sua reação imediata foi de estranhamento. Lembrava-se da entrevista concedida ao início do ano a um jornalista, para constar num livro que não era aquele. E se lembrava também que havia recomendado, até exigido, que, antes da publicação, ela tivesse acesso ao texto que seria publicado, pois sabia que na edição há cortes, pequenos ajustes da linguagem falada para a linguagem escrita. Mas aceitou de bom grado o convite. Afinal, vários ensaístas e o próprio organizador do livro eram seus conhecidos.
O estranhamento não se transformou ainda em indignação. No outro dia, compraria o livro, pegaria o autógrafo de cada um dos autores e, caso estivesse de acordo, ficaria tudo como estava. Naquele dia, dormiu pacificada com esse pensamento, acordou bem, e à noite foi ao lançamento. Lá mesmo, sentou-se numa cadeira e leu sua entrevista. Sentiu um constrangimento ainda difuso ao terminar a rápida leitura.
Já em casa, ligou para um dos autores, para o organizador do livro, manifestando seu desagrado com o que lera. Um deles lhe assegurou que já havia lido e gostado, que não se precipitasse. Foi dormir o mais cedo possível, pois carecia acordar no dia seguinte de madrugada, não para perambular pelas areias do Pina, mas para reler com calma. Releu. Leu as demais entrevistas e a Introdução do livro. E já levantou da mesa com uma decisão: naquele livro não poderia mais constar a sua entrevista.
Caiu em campo enquanto era tempo. Talvez não tivessem ainda sido distribuídos às livrarias. Esperou o horário comercial. Tentou inicialmente por telefone falar com um diretor da editora que conhecia. Mas ele estava em viagem e se comprometeu a ligar para o presidente da editora, para que a recebesse. A secretária informou que o presidente estava em reunião e ligaria de volta logo estivesse livre. Nada. O tempo passando.
Foi então que, depois de um café da manhã reforçado (não se parte para a guerra de barriga vazia),com o cuidado de não esquecer os remédios para a hipertensão arterial, empunhando a peixeira, com os poderes de Ogum, a mulher tomou um taxi (seria temerário dirigir seu carro com adrenalina correndo no sangue) e se dirigiu ao prédio da editora, no qual nunca antes havia posto os pés. Tentava ficar serena e calma. Há que ter firmeza e diplomacia em lutas desiguais. Era ela sozinha, contra uma instituição de respeito.
Ao chegar na recepção, duas moças lhe informaram que o presidente não se encontrava no recinto. “Está sim, em reunião. Por favor, anuncie que estou aqui para falar com ele e espero o tempo que for necessário”. Nisso, sem esperar resposta, subiu a única escada que viu a sua frente e sentou num sofá, ante-sala de uma porta que tinha tudo para ser a da presidência. Não esperou nem dez minutos, surge um senhor a quem não conhecia, que a recebe educadamente com um sorriso amigável e pede para que entre e sente a uma mesa redonda de pequenas reuniões, próxima a um bureau.
Ali teve início o colóquio. Difícil. A mulher, só aos poucos, sem perder a calma, também presente no lado do contendor, só aos poucos, a cada argumento, mostrando suas armas. Sim, já publicara nas melhores editoras do país, sabia como funcionava, sabia do prejuízo de suspender as vendas, mesmo que a maior parte ainda estivesse embalada para ser entregue às livrarias. Sabia que não se tratava apenas de arrancar as últimas páginas, nas quais constava a entrevista dela, que seria necessário rodar tudo de novo nas máquinas, refazer a capa.
Ali, só dois contendores, não se chegou a falar em advogado. Ambos sabiam da lei o suficiente. Houve, sim, um bode expiatório. Ademais, o responsável por quase tudo. Pago pela editora para editar as melhores entrevistas, que já não seriam publicadas no outro livro, cujo autor não pudera preparar os originais a tempo de ser lançado para a mesma efeméride, os cinquenta anos do Ato Institucional número cinco. O tal jornalista que a entrevistara, sabia da exigência da mulher, para que só fosse publicada depois de sua leitura e aprovação. Mentira-lhe com a maior cara de pau, quando a informara que a entrevista estava com o autor que lhe encomendara e que possivelmente não seria publicada já. Àquela altura, pelo que deduziu a mulher da conversa com o presidente da editora, ele já estava contratado e pago para escolher e editar as entrevistas para o outro livro, no prelo.
Não careceu nem usar a arma da acusação de desonestidade: o acréscimo de uma frase, certamente não sem intenções determinadas. Esses deslizes tão brasileiros de enganar, prevalecendo-se de privilégios de macho numa sociedade patriarcal. Roberto da Mata diria, “mas você sabe, moleque insolente, com quem está falando?”
O tal jornalista metido a sabido, bode expiatório, pagaria a reedição do livro. Será? A mulher, puta velha de outras contendas, pensou com seus botões que possivelmente o estado pagaria essa despesa. Pois sabe-se bem o coração de mãe que é o estado brasileiro. Para a parte queixosa, a questão estava, como esteve, resolvida. E era isso que lhe interessava. Ali. Sem juízes. Um cavalheiro e uma dama. Palavras de nobreza.
Já à porta de saída, a mulher ganhou um brinde (troféu da vitória?), que passou a enfeitar a mesa de centro de sua sala de visitas: as joias de Clementina Duarte, com todas as pedras e todas as cores dos sagrados Orixás.
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