Sempre gostei do início de um antológico conto da escritora espanhola Emilia Pardo Bazán (1851-1921): “É tímido você que me lê?”. O gosto leva à imitação, que aqui pratico com especial prazer: é idoso/a você que me lê? Mas não se preocupe: não é pegadinha nem golpe, é só uma maneira de começar a tratar um velho (ops) tema. Aliás, nem tão velho assim. Como se sabe, a velhice já não é o que costumava ser. Tornou-se um enrugado lugar-comum de tempos mais recentes. Nem vale a pena recordar que, em passados remotos, se morria muito jovem. O que até era bem visto pelos melancólicos de então: morrem cedo os que os deuses amam, diziam. Não há como negar: a velhice já foi muito pior ou sequer existia. Superlativa ou não, nunca foi boa coisa. Como disse o romancista Philip Roth, “não é uma batalha, mas um massacre”.
Mas também é na qualidade de idoso que desejo retomar o fio da meada antes que o novelo dos pensamentos ou da memória me atrapalhe. O fio é que nós, brasileiros idosos, não temos muito em que nos fiar. Além da idade e suas agruras, temos as nossas agruras nacionais. O Brasil está ficando velho, asseguram os demógrafos e o já venerando IBGE, que nasceu no remoto ano de 1934. Em 2050, estima-se que seremos 30% da população. Aí todos falam: precisamos nos preparar, mas, como estamos no Brasil, nunca nos preparamos para nada! É como diz o ditado popular, que imagino criado por um estrangeiro: brasileiro só fecha a porta depois de roubado. O que pergunto aos ventos e aos especialistas é se podemos vislumbrar nessa anunciada velhice da população algum aceno de paz e respeito.
Por ora, nem paz nem respeito. Você, que é idoso ou idosa, sabe que a luta continua. Luta pela vaga a que tem direito, luta pelo lugar na fila, luta por respeito, por ouvidos, por olhos (o velho vai se tornando invisível num tempo em que tanto se fala de… visibilidade!). Excetuando-se os velhinhos e velhinhas mais sapecas, velhos querem sossego. Como disse Proust, “a velhice fatigada aprecia o repouso”. Mas dificilmente vamos encontrar esse repouso pela frente, a não ser aquele supertranquilo da própria sepultura (“Quão fácil é ao corpo a sepultura!”, Camões). A economia brasileira, tão capenga, não está nem aí para o sossego dos velhinhos, que, ai deles, continuam a trabalhar, a ajudar a família, a cuidar dos netos. Isso sem falar que nossos tenros neurônios têm que suportar dezenas de senhas e verdadeiros enxames de golpistas. Estes, escusado lembrar, chegam por todos os lados: pelo e-mail, pelo telefone, pela porta da frente. Velho é pato — é o que inconfessavelmente pensam todos.
Pergunto: com que forças a velhice vai lutar em confrontos tão desiguais? Onde achar aliados e samaritanos? Sim, temos a lei, o nosso Estatuto. Ora, a lei! Ela não evita os maus-tratos nas clínicas e nos abrigos. Nem os maus-tratos das próprias famílias. Nem os atropelamentos no trânsito nem outras ciladas urbanas. Sim, algo já foi feito, mas há muito a ser de fato conquistado.
O Brasil envelhece. É irremediável. A velhice, por si mesma, reclama um cuidado redobrado com a saúde. Não nos iludamos: velho é vulnerável. Velho cai, se resfria, e o resfriado vira pneumonia, que vira óbito, que é a morte na linguagem da burocracia. “Veio a óbito” — veio porque quis, quem manda ser velho? Velho é surdo, velho treme. Sem falar das demências que abreviam a consciência e a memória e são indiferentes ao GPS. É preciso um exército (e exército eficiente) para salvar a velhice brasileira que se aproxima velozmente. O IBGE não mente, como suspeitam idosos amalucados e empoleirados no poder. A sociedade, desde já, precisa encarar essa verdade.
Um país de velhos sofridos, arqueados sob a desigualdade social e econômica, curvados ao peso do desrespeito generalizado, saqueados em seus direitos, eis o horizonte que temos pela frente. Além de queda, coice, como sintetiza a sabedoria popular. Se você é velho ou está começando a sê-lo, prepare-se, pois, entre nós, a hostilidade ao idoso é real, é assídua, é onipresente. Se não hostilidade, desdém. Vai além da má educação e da insolência. Como amigo e novo idoso, me permito avisar: você vai se surpreender. Será que carrego nas tintas?
Por falar em tintas, uma anedota para concluir. Conta-se que Picasso fez, por encomenda, um retrato de uma dama da sociedade. Um retrato tremendo, original, picassiano!… A cliente, desapontada, olhou a pintura e desfechou: “Não se parece comigo!”. Ao que o gênio espanhol contestou de imediato: “Mas vai parecer!”.
Picasso sabia das coisas e, como se sabe, morreu bem velho: aos 91.
Delicado e, ao mesmo tempo, contundente. As referências literárias abrandam o peso do alerta construído através da denúncia, do conselho e do prognóstico. Em 2050 estarei na turma dos idosos, mas já estou atenta… o texto é uma admoestação para todos os que caminham, inelutavelmente, pela estrada do Tempo.
Amigo Paulo Gustavo,
O tema é importante, e foi tratado, como sempre, com elegância e proficiência, até nas citações.
Mas devo reportar situação mais amena, no meu caso particular.
Alguns anos atrás, baixou-me um pneu do carro, na estrada Recife – João Pessoa. Quando me preparava para mudá-lo, um motorista de caminhão, vendo minha cabeça branca, parou e assumiu a tarefa, obviamente com mais eficiência e rapidez que eu. Foi tão elegante que não fiquei à vontade para lhe oferecer uma gorjeta. Não sei se errei.
Tendo ido renovar a minha carteira de motorista no DETRAN de João Pessoa, que fica em um bairro novo, totalmente desconhecido por mim, fui atendido por uma mocinha que se esmerou em me orientar para que não me perdesse no retorno. Parecia uma netinha preocupada com o seu avô.
E há somente alguns dias, quando esperava pacientemente no Banco do Brasil de Cabedelo para ser atendido em uma operação que não podia ser feita pelos terminais, antes de o número de minha ficha aparecer na telinha, fui abordado pelo gerente, que me levou até sua mesa e resolveu o meu caso.
Como vê, não estamos tão mal assim, no trato dos idosos. For God’s sake!
Caro Clemente,
Há exceções maravilhosas…
Grato por sua leitura e seu comentário.
Como crônica, leitura interessante mas por demais queixosa. Como artigo, não parece ter examinado dados, pois estes indicam que, no Brasil, os mais pobres não são os mais velhos, e sim os mais jovens. Verdade que as médias, como já teria dito Roberto Campos, são como o biquini, revelam muito mas escondem o essencial. Quanto à experiência de Clemente Rosas, desconfio que ele tem aparência de rico. No Face eu acrescentaria um emoji rindo aqui.
Obrigado, Helga, seus comentários contrabalançam muito bem o tom queixoso. Valeu.