Nem chegamos a ter resposta à pergunta “qual reforma administrativa?” A PEC da reforma administrativa, considerada a mais urgente após a reforma da Previdência e que o Ministro Paulo Guedes vinha prometendo para esta semana, foi adiada sine dia. A que pretexto? Ninguém disse que a reforma deixou de ser necessária. O texto estava quase pronto e constava apenas que o Presidente Bolsonaro não tinha ainda se decidido sobre alguns pontos. E agora o Palácio do Planalto recuou. Avisando logo a seguir que talvez recue do recuo.
A alegação para o adiamento foi a de que líderes políticos consultados teriam desaconselhado o envio da PEC neste momento por falta de “clima político”, haveria risco de rejeição no Congresso. Desse jeito, em ano eleitoral, vai faltar coragem para explicar ao eleitorado que o serviço público precisa ser reformado por uma questão de equidade e eficiência. A crise fiscal apenas confere mais urgência à questão.
Ao defender a “reforma administrativa” – sabe-se lá qual exatamente – e prometê-la para duas semanas depois, o Ministro da Fazenda Paulo Guedes armou o maior desastre de comunicação dos 13 meses do governo Bolsonaro. Em palestra na Fundação Getulio Vargas no Rio de Janeiro em 7 de fevereiro, o Ministro da Fazenda pretendeu enfatizar o descalabro fiscal que há nos estados, alguns dos quais têm mais de 90% da receita comprometida com salários e aposentadorias de servidores, e assim não têm recursos para melhorar serviços de educação, saúde e segurança que são a sua atribuição. Muito menos para investimentos em obras necessárias. Era isso que o Ministro precisava explicar ao eleitorado, de preferência sem economês nem ofensas.
O tom do Ministro já era exaltado. Subiu o tom e lançou a analogia dele: “O hospedeiro tá morrendo. O cara virou um parasita. Dinheiro não chega no povo. E o cara quer aumento automático.” (sic) É isso que ele acha que é “linguagem para o povo”. E queixou-se de manifestações agressivas por aumentos. Precisava de uma comparação dessas o nosso Ministro supostamente culto? Tantos privilégios abusivos a apontar no alto escalão do funcionalismo público, tantos dados que revelam em que medida o gasto com funcionários públicos no Brasil está acima dos padrões internacionais, não porque tem maior número de funcionários e sim porque a remuneração é mais alta.
Podia tratar de explicar por que a média da remuneração do funcionalismo no Brasil é mais alta que a média dos salários do setor privado. Ninguém está exigindo do Ministro a temeridade de comentários sobre o Judiciário mais caro do mundo, nem está pedindo a ele que mostre, por exemplo, que cada deputado custa aos cofres públicos, em média, 2 milhões de reais por ano, ou que registre que um deputado tem direito a tantos assessores que pode usá-los em campanha eleitoral, em mais de um sentido. Privilégios exorbitantes de alguns funcionários – minoria, mas longe de irrelevante – têm sido revelados na grande imprensa, ainda que com menos frequência que necessário. Mas o Ministro da Fazenda não precisava ser específico. Há estatísticas resumo suficientemente contundentes na parte sobre administração pública de um estudo sobre ajuste fiscal preparado pelo Banco Mundial em 2017.[1]
A nota tentando explicar as frases desastradas só conseguiu aumentar ainda mais o estrago. Fez coro com membros do governo Bolsonaro e o próprio Presidente que diuturnamente agridem ou ameaçam jornalistas. Lamentou “que sua fala tenha sido retirada do contexto pela imprensa, desviando o foco do que é realmente importante no momento: transformar o Estado brasileiro para prestar melhores serviços ao cidadão” (sic).
Claro que repórteres destacam nas notícias o que tem mais potencial de provocar espanto e atenção. Jornais são parte da “civilização do espetáculo”. Tampouco há porque esperar que todos os repórteres entendam a necessidade da reforma administrativa ou estejam preparados para defendê-la. Ou que jornalistas morram de amores por um governo que os hostiliza. Repórteres e jornalistas são mensageiros e é inaceitável tentar atribuir a eles o enterro da reforma. Nunca é demais repetir: se a imprensa não é livre e se não há liberdade de opinião, não há democracia. Aliás, quem tem revelado alguns privilégios absurdos de funcionários e recebimento de atrasados milionários é a imprensa.
É esperado também que entidades de funcionários públicos, sobretudo dos mais graduados e hábeis na interpretação da lei, aproveitem um pretexto desses para atacar a reforma. O trecho da fala de Guedes está no Google, foi reproduzido em toda a imprensa. E existem mais de 150 associações de funcionários públicos no Brasil que historicamente têm funcionado com mentalidade corporativista, olhando os interesses estreitos de cada carreira. Eis o tamanho do desastre que foi essa defesa oficial da reforma mais urgente do momento. Guedes conseguiu mobilizar contra a reforma os funcionários, as entidades do setor, de repente, a mostrar as excelências e sacrifícios do serviço público brasileiro, o que não deixa de ser a outra parte da verdade dos privilégios. Até com exemplos pontuais tempestivos, como o dos diplomatas brasileiros em Pequim que se arriscaram debaixo de neve na viagem até Wuhan para organizar o resgate dos brasileiros do foco do coronavirus.
Que Paulo Guedes tem sido inadequado na defesa das reformas não é novidade. Ficou claro quando fugiu furioso do plenário da Câmara, onde tinha que defender a reforma da Previdência, depois que um jovem deputado provocador o chamou de “tchutchuca”. Mais tarde, defendendo a reforma no Nordeste, resolveu apoiar seu chefe em parênteses gratuito no comentário que este fizera sobre a aparência da esposa do Presidente da França Emmanuel Macron. Valeu a Guedes o epíteto de “mistura de Alain Delon com anão de jardim”. Passados meses de debate da reforma da Previdência, imaginou-se que o Ministro Guedes aprendera a negociar, em nome de um bem mais alto, a retomada da economia do país. Qual o quê… Resolveu confusamente brandir o AI5, a título de defesa das reformas! Claro que provocou memórias da atuação dos “Chicago boys” sob Pinochet. A última derrapada fora em Davos, de que “pobreza é o que destrói o meio ambiente”, a demonstrar que não entende nada dos problemas ambientais. Talvez tenha sido errado esperar que o “training on the job” que um Ministro teria, com um chefe como o dele, pudesse resultar em mais que “casca grossa” e alguma anestesia. Depois das últimas proezas de comunicação “para o povo”, com criações de funcionário parasita à empregada doméstica que ia à Disney (este último personagem quando resolveu falar de taxa de câmbio), é adequada a pergunta de um deputado esta quinta em Brasília: “Será que Guedes andou tendo media training com Bolsonaro?”
O “parasita” da retórica de Guedes nada tem a ver com o “Parasita” de Bong Joon-ho, um filme magistral coreano que merecidamente foi a sensação do Oscar deste ano. Como os dois “aconteceram” na mesma semana, proporcionaram o pretexto para um paralelo que é um ataque pessoal devastador a Paulo Guedes, do cientista político Marco Aurélio Nogueira[2]. Mas observo, com uma ponta de esperança para a introdução da racionalidade na política econômica, que o foco das críticas e agressões foi o Ministro da Fazenda, e não a reforma administrativa que se pretendia propor. Essa ainda é preciso explicitar: o que deve mudar no estatuto do funcionário? Quais as alterações necessárias na Lei no. 9527/97 e na Lei no. 8112/90, para citar apenas um pedaço de mais este emaranhado de regras que incluem até uma lei de 1958? Quais as cláusulas que por contradição e ambiguidade permitiram abusos que usaram artimanhas jurídicas?
No caso da reforma da Previdência o Congresso e suas lideranças, em especial o presidente da Câmara Rodrigo Maia, acabaram assumindo a responsabilidade da articulação que conseguiu aprová-la. E merecem o devido crédito alguns membros da equipe do Ministro da Fazenda que foram incansáveis em explicar cada detalhe da proposta. Aprovada pela metade, pois o fato de que estados e municípios ficaram de fora é o que vem provocando dificuldades maiores no caso da reforma administrativa. Ainda mais em clima político polarizado e ano de eleições municipais.
É muita gente preocupada com qualquer modificação, algo como 11,8 milhões de servidores públicos segundo uma estimativa do Banco Mundial, 5,6% da população total do Brasil. Apenas 10% dos servidores públicos, em geral os mais bem pagos, são federais. A maioria está nas administrações estaduais, que têm a responsabilidade direta das tarefas mais intensivas em mão de obra, como saúde, educação e segurança. Há uma quantidade importante nas administrações municipais, onde ocorreu a maior quantidade das novas contratações nos últimos anos. É difícil obter transparência quando existem mais de 200 carreiras específicas na administração federal e o número de carreiras específicas nos estados também é alto, na casa de várias dezenas. A rigor nem sabemos bem o número total de funcionários públicos. E em cada um de nossos 27 estados as condições são diferentes. Um deles, o Distrito Federal, onde basicamente só há funcionários públicos, tem a renda per capita mais alta do Brasil.
O país mal começa a entender que a expansão do gasto público não pode continuar sem aumento dos impostos, que a redução de impostos é impossível sem redução do gasto público. Mas a questão orçamentária é apenas parte do problema. Sobretudo na reforma administrativa o que está em questão é o fornecimento de serviços públicos pelo Estado. Há uma demanda generalizada por melhoria dos serviços públicos. Como conseguir isso, eis a questão. O ex-ministro Pedro Malan, em artigo recente[3], tão claro quanto elegante, comentou a reforma administrativa como questão do Estado brasileiro, não simplesmente de governabilidade do governo de plantão. Quando se buscam formas de tornar o governo mais eficiente como provedor de serviços públicos, “é preciso acreditar que isso não seria impopular” (itálicos dele, imprescindíveis). E termina: “A esperança não morre, mas pode atravessar angustiantes fases de vida.”
[1] Esse estudo detalhado foi pedido do governo Temer e foi preparado ainda durante seu governo. World Bank Group, A Fair Adjustment: Efficiency and equity of public spending in Brazil, Novembro de 2017.
[2] marcoanogueira.pro/os-parasitas-de-guedes-e-a-reforma-administrativa/
[3] Pedro S. Malan, Peso do passado e pressão para prometer, O Estado de S.Paulo, Domingo 9 de fevereiro de 2020, p. A2.
Muito bom Helga
Cara Helga Hoffman,
Pena que P. Guedes não tenha em sua retórica a elegância, sutileza e brilho da objetividade de um P. Malan.
No entanto, como indica o seu excelente artigo, o relevante é o parasitismo de parte da elite dos servidores públicos dos três poderes.
Abraço cordial.
PS. Não sei o porquê do seu encantamento pelo “Parasita” coreano.
“Encantamento” não é o termo adequado. É um filme genial, quando terminou estávamos estatelados. E mais: dado o contexto, mais que merecia ganhar o Oskar, por sua atualidade. E porque os eleitores do Oskar quiseram dar um sinal de abertura para o mundo, oposto ao isolacionismo de Trump. Mas eu não vou discutir o Parasita de Bong Joon-ho aqui. Só mencionei porque não gostei do uso que dele fez o Marco Aurélio Nogueira, numa comparação que considero forçada.
Achei a retórica do ministro razoável e o problema é que ele se desculpa. Ele não foi feliz no caso da empregada doméstica na disneylândia, mas no caso do parasita, no meu entender, ele foi muito preciso.
Sou servidor público, numa categoria de poucos privilégios (professor da rede estatal de escolas básicas do estado do Rio Grande do Sul, habilitação em Filosofia mas atuando como professor de História, Sociologia e Filosofia) mas, enfim, muito mais do que o a média dos pais dos meus alunos.
Minha categoria, aliás, brada contra privilégios, mas em 2016 foi contra a mudança nas regras de divisão dos sacrifícios orçamentários entre os três poderes (estaduais) e ministério público e defensoria pública dentro do executivo. Ou seja, meu sindicato jogou em favor da manutenção dos privilégios que depois alega retoricamente justificar as greves – na prática meros exercícios de “vamos ver quanto conseguimos mobilizar” para fazer nosso ranqueamento sindical para fins de investimento eleitoral na sequência.
Eu acho o seu depoimento importante, o mais importante, porque de alguém que em princípio sofreria impacto direto, para o bem ou para o mal. Meu “problem”, digamos é que: 1. Guedes não apresentou que reforma exatamente ele pretende; 2. Fez uma “defesa” que foi claramente contraproducente: 3. Não precisava, pois há dados suficientes mostrando abusos que precisam ser corrigidos e que liberariam dinheiro para melhorar o serviço público em geral
Artigo excelente, mostrando como as declarações desastrosas do Ministro Guedes dificultam ainda mais as modificações necessárias na legislação referente ao funcionalismo público no Brasil. Cabe uma ressalva: não é verdade que no Distrito Federal (DF) “… basicamente só há funcionários públicos …”. Aproveito para apresentar alguns dados obtidos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua anual de 2018 (a última disponível).
Das pessoas ocupadas no Brasil (82,9 milhões), 1,6% estão no DF. Entre as pessoas ocupada no DF (1,3 milhões), 22,5% são empregados públicos. As demais parcelas são 46,3% de empregados no setor privado, 7,4% de empregados domésticos, 4,9% de empregadores e 18,9% de trabalhadores por conta própria.
A proporção de empregados no setor público no DF (22,5%) é, sim, muito maior do que no restante do Brasil (12,9%).
O contrate é ainda maior considerando a proporção das pessoas ocupadas que é funcionário público estatutário ou militar: 17,7% no DF e 8,7% no restante do País.
Sabemos que os rendimentos obtidos na PNAD têm muitas limitações, havendo forte tendência de subdeclarar o valor. Mas esses dados são indicadores importantes da desigualdade da distribuição da renda no Brasil. É interessante comparar os rendimentos médios mensais declarados (com todas suas limitações), em reais do último trimestre de 2018, considerando o rendimento habitual que a pessoa obtém nas atividades que exerce:
Geral (pessoa ocupada), fora do DF: R$ 2.294
Geral (pessoa ocupada), no DF: R$ 3.923
Estatutário e militar fora do DF: R$ 4.156
Estatutário e militar no DF: R$ 8.919
Excelente o esclarecimento, com o seu rigor e sensatez habituais.
Rodolfo Hoffmann é conhecido pela seriedade dos seus estudos sobre renda e sua distribuição no Brasil. Então eu fico feliz com o aditamento que fez. Quando escrevi que Brasília basicamente só tem funcionário eu até lembrei na hora que há o comércio, há os empregados particulares desses funcionários, os jardineiros, cabeleireiros e manicures, alguma produção local deve existir, ou seja, alguns empresários, etc., mas deixei p’ra lá … O acadêmico com reputação de rigor não deixou passar. Mas os dados que apresentou confirmam que o peso do funcionalismo no DF é maior, e que a renda dos funcionários ali lotados é muito maior.