Os economistas são unânimes em considerar que, diante da grave recessão econômica decorrente da estratégia de enfrentamento do Covid-19, o Estado brasileiro deve abrir os cofres sem medo e sem pena, para moderar o impacto sobre as empresas e para proteger a população mais pobre, que vai perder emprego e renda. Ningúem pode discordar da ação decidida e ousada do Estado neste momento de calamidade, como está sendo feito em quase todos os países, com diferentes níveis. Entretanto, os economistas, mesmo os mais ortodoxos, parecem esquecer uma pergunta elementar: “quem paga a conta?” ou “de onde vem o dinheiro?” Para alguns é simples: “gastem que o milagre keynesiano resolve”. Infelizmente, não é tão simples, e a conta será paga depois, e se não devidamente distribuida, vai penalizar precisamente quem menos tem condições de arcar com tamanho prejuizo. Como o Estado brasileiro já está afundado numa crise fiscal, e considerando que a recessão vai provocar grande perda de receita pública, é uma irresponsabilidade ignorar a necessidade da redistribuição de outras despesas e da geração de receitas adicionais.
Permitam uma brincadeira: os economistas não leram meu artigo da semana passada nesta revista – “E a receita?” – e continuam pensando apenas na ampliação das despesas públicas. E quem leu e até gostou de uma das propostas, como o presidente da Câmara de Deputados, Rodrigo Maia, não entendeu bem, ou preferiu limitar-se ao mais simples e de menos resistência das corporações. Brincadeira à parte, Maia está propondo uma redução de 25% dos salários de todos os servidores públicos, o que daria mais de R$ 80 bilhões no ano, para financiar parte da elevação das despesas com a saúde e com a proteção econômica e social. A proposta de Maia vai na direção correta da redistribuição das despesas, mas é altamente injusta, penalizando igualmente servidores públicos com salários muito desiguais: cerca de 12% dos servidores ganham menos de quatro mil e quinhentos reais e 70,6% deles têm salários de até dez mil e quinhentos reais (valores de 2016).
A proposta de redistribuição de despesas e geração de receita adicional apresentada no artigo referido acima não se limita a cobrar uma contribuição dos servidores públicos e, quando se refere aos salários e aos benefícios da previdência do setor público, trata desigualmente os desiguais: apenas os 29,4% dos servidores ativos que recebem mais de dez mil e quinhentos reais seriam convocados a contribuir (compulsoriamente, é verdade) com o que excede a este valor mínimo; e os 20,5% dos inativos que têm benefícios acima destes dez mil e quinhentos reais poderiam também ceder o valor excedente, colaborando para a moderação, transitória, das despesas primárias. Num cálculo aproximado, este mecanismo poderia gerar uma economia de cinquenta bilhões de reais, ao longo de um ano e, mesmo limitando aos quatro meses esperados da crise, disponibilizaria mais de dezesseis bilhões de reais do orçamento da União, para enfrentamento da crise sanitária e social.
De qualquer modo, não se pode contar apenas com a contribuição (involuntária, é certo) dos servidores públicos, seja por questão de justiça, seja pela necessidade de muito mais recursos para dar conta da necessidade de gastos públicos no enfrentamento da pandemia. Os deputados não gostam, mas deveriam ceder os recursos alocados nas Emendas Parlamentares e no Fundo Eleitoral, até porque as eleições municipais deste ano parecem comprometidas.
A calamidade pública que justifica o escancaramento dos cofres públicos, para moderar o impacto na economia e na renda da população, da propagação do Covid-19, é a mesma que deve viabilizar medidas profundas de redistribuição das despesas primárias e de geração de receita pública adicional. Do contrário, vamos pagar um preço muito alto no futuro, com o agravamento do desmantelo do Estado.
Tem toda razão Sérgio C. Buarque: mesmo liberando gastos para o combate à epidemia é preciso tratar de modo desigual os desiguais. É bom recordar que inflação alta sempre penalizou os mais pobres. Gastar agora é preciso, mas não como se dinheiro pudesse ser impunemente impresso na Casa da Moeda, como se não houvesse o amanhã, como se nunca fosse chegar de novo a hora de equilibrar gasto e receita pública. Será que um dia a “classe média” brasileira reconhecerá que de média não tem nada, que não passa de 10%, 20% talvez, dos que têm alguma renda e que isso parece muita gente apenas porque o Brasil tem bem mais que 200 milhões de habitantes?