Fernando Dourado

Paris em quarentena.

Hoje fiz de novo o que venho fazendo nos últimos dias. Para me manter ao abrigo das interpelações dos policiais, e para não ter que mostrar-lhes uma espécie de salvo-conduto ideado para desestimular as saídas dispensáveis, e para evitar explicar minhas prioridades, sumi atrás do Panthéon e fui me esgueirando para as bandas da rue Mouffetard, carregando a sacolinha de compras. Isso porque, chegando à praça de la Cotrescarpe, posso sempre dizer que preciso descer até os comércios ainda abertos em torno da estação Monge, o que me valerá bom álibi. Se abordado, estando o documento de conformidade com a janela do horário de saída, alego que devo ir à farmácia comprar solução de álcool; passar na loja de congelados Picard; pegar um capão recheado que encomendei na rôtisserie; escolher tâmaras no fruteiro marroquino ou me prover de vinho e papel higiênico no mercadinho da rue Lacépède, não longe das Arenas de Lutécia. Afinal, se há um país onde todos esses itens podem ser considerados de primeira necessidade, este é a França. Se apertado por ali, e impedido de voltar ao meu trecho do boulevard Saint-Germain, conheço uma rua que vai da Linné à Paris VII Sorbonne, e de lá posso descer, pouco notado, até o cais do Sena, sempre que mantiver um passo firme e determinado, e não o de flâneur diletante. Ou ainda, se o documento estiver para expirar, posso pegar um ônibus no muro do Jardin des Plantes, o que também me deixaria perto de casa, ou daquilo que ultimamente me acostumei a denominar como tal. Como recurso extremo, tenho as fontes da Grande Mesquita, mas aí confesso que é opção mais desesperada porque, se o templo estiver aberto, sempre haverá muita gente em circulação. A verdade é que algo me excita nesse jogo de esconde-esconde em Paris, como se os inimigos fossem truculentos asseclas da Gestapo, e eu um engenhoso resistente, capaz de burlar a besta-fera. Na luta que travo intimamente contra a ideia de que um micróbio possa me aniquilar, prefiro pensar que a ameaça é de carne e osso, que enxerga com olhos azuis, que calça coturnos reluzentes de fino couro e que tem uma pistola austríaca no coldre. Ora, antes fosse. Sim, antes fosse.

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Mas o fato é que o vírus é bem diferente. As fotos que os sites científicos mostram, trazem a imagem multiforme de uma espécie de rochedo de coral algo esponjoso, todo ele de cor verde piscina – que deve representar nosso tecido pulmonar -, sendo rapidamente povoado por uma população de micro-pontos cor de rosa que se agrupam em colônias compactas. Uma vez confiantes no poder destrutivo umas das outras, investem contra nossas vias respiratórias, e prostram o cidadão em dois tempos, deixando-o emborcado numa cama hospitalar. Tendo ele muita sorte, enfiar-lhe-ão uma cânula na boca, caso tenha sido eleito para a reanimação, seja esta intensiva ou não. Fico pensando em reanimação, palavra recorrente em todas as páginas do noticiário francês. Vem de restituir a alma ao moribundo, de avivar a brasa da vida que se esvai, que perde a chama, que quer se apagar. No mais das vezes, quando se trata de asmáticos e obesos – oh, não -, o sujeito é descartado logo na entrada, não muito diferente do que acontecia naquela rampa ferroviária de Auschwitz-Birkenau. A diferença fundamental aqui se atém ao plano moral, vamos dizer. Ao contrário do que acontecia na Polônia, onde a morte não era determinada pela natureza, senão pelo sanha do extermínio de minorias e da pilhagem descarada, os hospitais da Europa – e logo os do mundo -, simplesmente administram recursos escassos, e acham que não é o caso de gastar munição boa com caça miúda. Afinal, a peste está aí para dar uma forcinha ao ciclo da vida, eliminando do panorama os mais frágeis, os vulneráveis, os que oneram o custeio da máquina e nada dão em troca. Para o bem do planeta, quando formos invadidos por alienígenas, precisamos de guerreiros para defender nosso sistema de informação. E não de velhotes que tomam um minestrone ralo ao meio-dia, pelas mãos de uma cuidadora filipina. Outro aspecto tremendo do novo cenário é a transmissibilidade acelerada e banal da praga. A vida diária europeia ainda não prescinde de moedas de todos os tamanhos. Em cada bolso, levamos bom número delas mesmo porque aqui nunca se teve a cultura de arredondar preços para facilitar o troco. Com isso, é quase inevitável que a ponta de um indicador faça uma incursão à boca, à mucosa dos olhos ou à do nariz. Daí se abre a contagem regressiva, sempre de desfecho incerto. Não bastassem as vicissitudes do confinamento, que colocam à prova laços jamais testados sob aquela temperatura e pressão, tanto os familiares quanto os amorosos, quando não ambos, surge uma falange de hipocondríacos que, a justo titulo, encara um pigarro recorrente como um atestado de terminal. E então, já visualizam o pior, coitados.

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“O que posso dizer, docteur, é que cheguei aqui ao Pitié-Salpêtrière aos primeiros sintomas do que podia ser este mal. Se tiver que morrer, até aceito. Relutantemente, mas aceito – se em algum lugar estiver escrito que precisa ser consensual. Agora, por favor, não venha me dizer que foi por negligência que chegamos a esse ponto. Sei que tenho asma mal-cuidada e esse corpanzil que faz com que o senhor me olhe como se já estivesse desenganado. Não, não negue, não nasci ontem, sei do que falo. Mas, asseguro-lhe, me acople a um respirador que prometo reagir bem. Não quero morrer às vésperas dos 62 anos, doutor, mesmo sabendo que será aqui em Paris, uma cidade-paixão, e onde, levianamente, disse em prosa e verso que queria ser enterrado ao lado de Beaudelaire. Pois sim, não me leve tão ao pé da letra porque, antes de tudo, não há pressa. Preciso isto sim de mais uns vinte anos por aqui na planta baixa, onde prometo levar vida virtuosa…se me safar, ça va de soi. Sim, desculpe, já ia esquecendo. É que termino me empolgando até com o que não devia, acho que é próprio das almas latinas arrebatadas, entende? Pois bem, agora respondendo: ontem à noite comecei a sentir uma coceirinha persistente na garganta, ali pela amígdala direita, creio eu, com um quase nada de coriza. Assoei bem o nariz, e fiquei chupando pastilhas de Humex para ver se a irritação passava. Podia ser faringite. Eu sabia que a prova de fogo seria o despertar dessa manhã. Então veio a tal tosse seca de que tanto falam na televisão e, foi então que me assustei, pois veio um frio de febre, mesmo com a calefação ligada no máximo. Agora sua enfermeira diz que meu teste está indefinido e que precisamos de outro. Vamos fazer um pacto, dr. Esber. Antes de me desenganar, me submeta a um tratamento heterodoxo. Rasgue o manual, foi o que fiz a vida toda. Me dê um super antibiótico e me deixe sair daqui. Se for para morrer, já sei onde quero ir. Não quero agonizar em grupo, e morrer inconsciente. Quero viver minha morte. Como as mulheres querem experimentar o parto.”

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Um cenário mais benevolente seria que o tal pigarro fosse só mesmo mais uma irritação na faringe, e que eu despertasse tão bem quanto acordei ontem, ou nos demais dias de cativeiro, sem quaisquer sintomas do vírus. E dentro de mais um mês ou dois, admitamos que possa sair do apartamento, e que a vida retome certa normalidade. O que virá? Será que a humanidade e eu próprio vou conseguir apurar mais a noção entre o que é essencial e o que é acessório – diante da candente fragilidade dos humanos? Sinceramente, não acredito em grandes mudanças no plano pessoal da minha sobrevida. Mas como toda conversa pode doravante ser a última, e visto que não temos um padrão de previsibilidade sobre a evolução da epidemia, apesar dos bons indícios e pistas de cura – seja por via medicamentosa, seja pelo chamado achatamento de curva -, considero que há muito abracei a convicção de que o tempo era sim o bem mais precioso, e não o dinheiro. É desse axioma que deriva todo o meu amor à vida. Fosse eu de me ocupar com o acessório, e tivesse desprezado o essencial, a vida teria sido tediosa, senão insuportável. Mesmo quando era um homem de negócios, desses que singraram o mundo durante quatro décadas, o lúdico sempre foi parte do essencial. E a missão profissional pura e simples, parte do acessório. I-ne-qui-vo-ca-men-te. Seja como for, espero que o mundo resulte melhor dessa experiência. Que voltem, afinal, a colocar o ser humano no centro do tabuleiro e que digam: o que podemos afinal fazer por esse infeliz? Alimentar o otimismo, é resistir à praga. Como escreveu o israelense David Grossman, “o fato mesmo de imaginar uma situação melhor, significa que nós ainda não cedemos à epidemia, ao medo que ela provoca, que ainda não reduzimos nossa humanidade ao silêncio.” Assim como ele, acredito num surto de renascimento quando tudo isso ficar para trás. Não geral e sequer imediato, mas numa curva de tempo certamente mais preguiçosa, porém mais sólida, do que foi a passagem do Covid-19 entre nós. Diz-nos ele ainda: “Talvez compreendamos que essa epidemia mortífera nos ofereça a ocasião de extirpar de nós mesmos as camadas de gordura, de avidez bestial. Da reflexão obtusa e cega. De uma abundância que se tornou um estorvo, que começou a nos sufocar (e para que diabos acumular tantos objetos? Por que enchemos e enterramos nossa existência a esse ponto, sob montanhas de objetos supérfluos?)”