Fernando Dourado

Paris de quarentena.

“Diga em que parte da cidade você está para eu ficar com inveja”, escreveu um amigo, certamente movido pelo propósito nobre de me levantar o ânimo soturno. De frente à praia, certo de que a vista do mar não lhe faltará, aconteça o que acontecer, eis a fórmula que ele encontrou para dizer que está comigo nessa hora amarga. Mais do que isso, ele deixa filtrar nas entrelinhas da pequena mensagem que, em qualquer circunstância, Paris será sempre Paris. Pois bem, por uma vez na vida, posso assegurar que as paisagens da cidade-luz nunca ficaram tanto a dever aos cartões postais do pós-Guerra, e que o cenário humano não escapa à regra dos piores momentos de cerco. Ninguém se cumprimenta, as palavras se resumem ao mínimo e, ao despertar na manhã dessa sexta-feira, me impressionou o silêncio espesso e imaculado. Se pudéssemos ouvir alguma coisa depois de mortos, pensei, esta seria a trilha sonora.

Já vestido, registrei no meu pequeno diário de bordo: “Hoje fiquei na cama vinte minutos, só movimentando as articulações. Fiz exercícios para os tornozelos, flexionei os joelhos e espalmei e fechei várias vezes as mãos entorpecidas. Depois me virei para os lados até sentir que a coluna estava pronta para me aguentar. Os pensamentos estavam sombrios. Ontem tive que insistir com mamãe ao telefone para que dispensasse a faxina de regra das sextas-feiras. Recebi o comunicado oficial de que meu voo de retorno foi cancelado – o que não muda nada. Arquivei todos os planos que tinha para um 2020 radiante, e decidi que o melhor que posso fazer é comprar gengibre para fazer chá, pelas propriedades anti-inflamatórias. Vou preparar o carrinho de compras, vestir a máscara e fazer o tour à farmácia, à padaria e ao banco. Sempre a dois metros das pessoas, torcendo para revê-las amanhã na fila. Nunca se sabe”. É claro que nunca registro o que mais temo. Mas hoje é dia de fazê-lo.

Digamos que eu desperte um dia com os sintomas clássicos do coronavírus e me desloque daqui até o polo dos hospitais, ali por Port Royal – distância que dá para cobrir à pé, mantendo distância das poucas pessoas que cruzaria no trajeto. Na recepção, entregaria o passaporte, uma cópia do seguro-saúde, se é que serve de alguma coisa a essas alturas, e lá sumiria nas entranhas de uma máquina onde reina inquietude, tensão, dor e desespero. Ora, precisaria ser um rematado ingênuo para achar que, sendo obeso e asmático, seria brindado com uma das cobiçadas máquinas de ventilação pulmonar – a artilharia de frente contra a fibrose pulmonar. Posto à margem das prioridades, me atariam ao pulso uma pulseira violeta e, para quem fosse do ramo, saberia que ali estava um cabra marcado para morrer, ou, quando muito, à espera de um milagre. O que se operaria na minha cabeça? No que pensaria? A mão de quem queria afagar, não estivesse condenado à solidão mais absoluta?

*

Ontem registrei nas minhas anotações: “Há algo de trágico em Paris sob regime de sítio. Como descrevê-lo? É difícil porque ninguém a vê além dos limites de sua casa, de sua rua, de seu quarteirão – quando muito. A imagem que me vem é a de uma linda mulher vestida de noiva, de tiara de diamantes na cabeça e um buquê de cores adamascadas na mão. Então, bem na hora de ir para o altar, a meio caminho entre o carro nupcial e a porta da igreja, desaba um aguaceiro monumental, seguido de forte ventania. E lá se vão as flores, os adereços, a enorme cauda de renda branca. A água vai lhe borrar a maquiagem, desfazer o penteado, e o frio súbito a fará dobrar-se em duas, espirrar e, quando tudo passar, ainda em transe, ela vai se perguntar sobre o acontecido, se aquilo tudo era verdade ou pesadelo. Como era que ela, antes tão bela e maviosa, estava reduzida agora a rala lembrança da mulher desejada que fora até a véspera?”

Os humores oscilam drasticamente no confinamento. Tanto você pode cantar “Aux Champs-Elysées…”, a baladinha de Dassin, quanto, quando mais contrito, remoer “Les jours heureux”, de Aznavour. “Ils renaîtront les jours heureux, les soleils verts de notre vie,  Ils reviendront semer l´oubli, après le feu, Et refleuriront avec eux, les fruits pervers de l´espérance, Avant courrier de l´insouciance et des jours heureux.”[1] A caminho dos hospitais de Port Royal, onde expiraria, tudo isso iria me passar pela cabeça, e o absurdo de morrer na cidade onde, em certa medida, me fiz – o que quer  que isso signifique – me deixaria no limbo dos moribundos, a repetir o cantochão: será que isso está mesmo acontecendo comigo? Por que não desperto desse pesadelo? Será que um beliscão na coxa estancará essa agonia? Mas logo uma maca transportada ao lado com um lençol encobrindo um rosto me dissuadiria de qualquer esperança. E então talvez viesse outra trilha sonora.

Na busca desesperada por ar, na tentativa vã de encher os pulmões e de debelar uma dor que dizem ser imensa, em meio à algaravia de apelos lancinantes, me viriam os estribilhos que douraram minha adolescência recifense, enchendo de cores e sentimentos o que já era o paraíso. À hora derradeira, talvez me acorresse o amado Jacques Brel. “Dans ma pipe, je brûlerai, Mes souvenirs d´enfance, Mes rêves inachevés, Mes restes d´espérance, Et je ne garderai, Pour habiller mon âme, Que l´idée d´un rosier, Et qu ún prénom de femme, Et puis je regarderai, le haut de ma colline, Qui danse, qui se devine, Qui finit par sombrer, Et dans l´odeur des fleurs, Qui bientôt s´éteindra, je sairs que j aurai peur, Une dernière fois.” Há mesmo lugar para a poesia à hora da morte? Ou o horror embota e paralisa qualquer conexão com o sublime, dando margem, se tanto, à lembrança de um passeio de mãos dadas com nossas mães, em algum dia da infância? Existe verso maior?

*

A verdade é que aos confinados do mundo, tenho por hora um recado mais prosaico e pedestre, como registrei essa semana: “Durante 2020 até agora, fiz uma média de 6 km a pé ao dia. Em cidades planas como Viena, Belgrado e Praga, chegava a oito. Nas ladeirosas, como São Paulo e Girona, uns cinco. Em Budapeste, onde amo caminhar, atingi uns dez. Mas ontem e hoje, com as medidas de restrição às saídas de casa em Paris, mal caminhei 2 quilômetros – e, mesmo assim, carregando sacolas e tentando evitar contato direto com as pessoas. Mas tem pior. Uma passada pelos comerciantes, me fez levar à mesa bastante fruta, presunto cru, pão, salame, vinho tinto e, para o jantar, um tartar de salmão impecável, seguido de queijos. Falando com um amigo da Itália, confinado há já 4 semanas, ele disse que engordou 8 quilos no período. Já estou com o documento preenchido no celular para justificar uma caminhada amanhã. Sempre só, e em lugar deserto.”

Serão tão calamitosas as consequências dessa crise terrível que não haverá Plano Marshall que alivie a agonia prolongada, a hemorragia multifocal que encharcou o mundo. Teremos sim, talvez sem tardança, uma nova Bretton Woods, virada a folhinha do calendário eleitoral americano. Mas como reza um ditado, todo problema que dinheiro resolva, não é um problema. Mais curioso estou sobre as consequências comportamentais que decorrerão daí. Espero sobreviver a tudo isso para saber da dinâmica doméstica de cônjuges que se detestam. O que acontecerá? Vão se matar ou se reconciliar? Como as redes de internet aguentarão a sobrecarga? Como os compradores compulsivos vão se virar se não têm alternativa para adquirir quinquilharias? Em que medida resultará daí um mundo mais solidário? E como as lideranças políticas serão avaliadas, agora que os estatistas fanáticos se rejubilam com a emergência de um Estado forte e necessário?

Hora de me despedir. Tenho que lavar o chão e limpar as maçanetas. Leio meu penúltimo registro, este muito prazeroso: “Hoje ouvi no rádio que a máscara é dispensável para não-doentes. Mas quem sabe se está enfermo? E se formos assintomáticos? Tenho algumas e não me custa usá-las mesmo porque não tenho como doá-las a hospitais. Na mesma emissão, o médico recomendava aos que usarem máscara, que passem álcool em gel na parte interna, para impermeabilizá-la. Hoje, antes de sair para comprar o básico, revesti a superfície de contato com o nariz e coloquei-a no rosto. Amigos, a cabeça zuniu. Por um momento, me senti no Carnaval de Garanhuns, dando um cheirinho em lança-perfume. Imaginei por segundos as meninas dançando à volta, e o vozeirão de Claudionor Germano, cantando Capiba. Então caiu a ficha. E a sirene de uma ambulância me trouxe de volta ao mais irônico dos degredos. Mais tarde preparo outra dose.”

*

Alguma coisa mudou. Muito mudará. Termino com o estribilho que Mireille Mathieu bradava nos anos 1970. “Lorsque revient l´automne et les grands soirs, Lorsque la nuit est plus longue et plus noire, Je me souviens d´un soir à Petrograd, Où les anciens se cherchaient dans le noir, Ohé, les gars!  Quand fera-t-il jour, Camarade? J´entends toujours cette question, Qu´ils se posaiet les camarades pendant qu´un vieux croiseur en rade, Guelait à plein canon, Révolution.” Para quem sempre sonhou com uma, eis que um bichinho invisível nos trouxe uma revolução de verdade. Bonjour, camarada Corona.

[1] Renascerão em dias felizes, os sóis verdes de nossa vida, Voltarão a semear esquecimento, depois do fogo, E florescerão com eles, os frutos perversos da esperança, Antes do correio do descuido e dos dias felizes