(2:06) 17:06 em Paris / 12:06 no Recife
Tás vivo, Dourado? Rapá, que alegria arretada, bicho. Minha irmã disse que tu tava vivinho da silva, arengando política no computador. Eu jurava que tu tinha era abotoado o paletó, cabra da gota serena. Manezinho, meu primo, que é vigia no prédio perto do teu, disse que tu tinha morrido, aquele desgraçado. Disse que foi o véío da banca da alameda Franca que espalhou esse boato pra São Paulo toda, visse. Disse que tu tinha morrido em Londres, acho, fazendo farra, desenganado, sem sentir cheiro de nada e gosto de porra nenhuma, e que tu tinha batido a caçuleta num porre de despedida. Eu fiquei arrasado, Fernandinho. Apesar de a gente se ver pouco, são pra mais de 50 anos que a gente se conhece. Mas juro que pensei: foi legal, esse aí viveu, viu o mundo, empenou de namorar, quer dizer, legal mais ou menos, né, porque pelo menos tinha morrido com estilo, numa cidade bacana, parecida com tu, no hospital da rainha, bebendo escóti no gargalo mais ela. Pensei em ligar pra tua família, mas tava esperando esfriar a cabeça. E depois também não tenho intimidade, tava cheio de dedo porque vocês são meio granfino, e eu um aruá da cabeça chata, criado na maré, mas que gosta de tu pá cacete. Tás lembrado daquela farra da gente que durou três dias em São Paulo? Pois já vai pra 30 anos, acredita, e não tem semana que eu não conte essa história por aí, por Jesus. Pois olha, bicho, já que tu tá vivo, cacete, te cuida agora, porra, e vê se perde essa barriga, visse? Soube que tu tava que era uma pipa, quer dizer, que tá, né, com uma barriga de chope de dois. Num sei se já tás no Brasil, que ainda é o melhor lugar do mundo, nem peço pra que tu ligue de volta porque sei que é perder tempo. Mas ó, se tu num voltou ainda, vê se me traz um perfume daquele, tás lembrado, vou botar uma foto aqui do frasco, que ainda hoje tenho, boto uma gota só todo ano no Natal. Beijo pra tu, te amo muito, tô até emocionado. Que susto da porra, rapaz. Mas agora já tô tomando uma por conta dessa, visse? Um cheiro.
II
(1:57) 17:40 em Paris e 12:40 no Recife
Já vi que tu atendeu, visse? Apareceu o rabichinho azul. Tu devia ligar pelo menos pra dizer ao vivo que é tu mesmo, né, bicho danado? Cabra enjoado com telefone arretado, tu sempre foi assim, a natureza de cada um é o que é. Óia, queria só te dizer que quem embarcou na pandemia foi Sandoval, tás lembrado? A turma num soube explicar direito se foi isso mesmo ou se é porque a diabete já vinha fazendo estrago. Tava que era um caniço, por Deus. Eu até pensei na minha leseira: vixe, Deinha, esqueci de dizer a Sandoval que Fernandinho já tinha ido na frente. Eu com um copo de cerveja já fico assim agora. Óia, ela tá me dizendo aqui que ficou com vergonha de eu ter falado do negócio do perfume. Eu disse pra ela que a gente tem amizade pra isso, mas num teve jeito. Então, tu já sabe, esquece o perfume. Parece que eu gostei de tu tá vivo por causa de um cacete de um perfume. Pronto, ela agora fez sinal de que tá satisfeita. Pedido retirado. Talvez tenha do frasquinho pequeno, pronto. Já sou um nêgo véi de quase 70, pra que diabo mais quero ficar cheiroso se é só pro Natal, né? Óia, só mais uma coisa antes que a gente comece a beber demais. A gente tá em casa mesmo, os meninos vêm tudo pra cá e minha netas tão duas moças bonitas que benza o Deus. Escreve aqui pelo menos o número de tua mãe pra gente dar uma proseada com ela, de feliz São Pedro, qualquer coisa dessa. É lógico que a gente não vai dizer que achava que tu tinha morrido. É só pra dizer a ela que se precisar de alguma coisa, avise. As meninas tão fazendo faxina em casa de quem precisa. Pra tua mãe, não tem que pagar nada não, e elas usam máscara e fazem tudo no capricho, que nesse ponto puxaram à mãe, não a mim. Tô feliz pra caralho, rapaz, tu num imagina como eu tinha ficado borocoxô com tua morte. Tu morto na Europa, sem um defunto conhecido por perto. Tchau, telefone tocando.
III
(1:02) 19:41 em Paris e 14:41 no Recife
Dodô, só pra te dizer que Deinha falou com ela, visse. Num sei se era porque ela tava precisada mesmo, mas gostou foi muito da ideia. Que mulher fina. As meninas ficaram de ir lá no sábado. Elas têm carro e tudo. Precisa ver, parece patroa. E depois Luzia é toda lourinha, dá gosto de ver. Onde se viu um negão ter uma neta daquela? Mas mãe, não sei se tu tá lembrado, era morena clara e tinha o olho bem verde. Eu tenho o olho da família de meu pai, meio de guaiamum, se é que dá pá chamar aquele traste de pai, que já se foi tarde. Só terminando. Deinha me mostrou aqui teu Facebook. Tás bem, hein? É cada prato de comida enfeitado que parece de festa. Num tem comida normal aí não? Ela falou que tu tá é em Paris. Não é por nada não, mas é a terra do perfume. Prefiro um perfume do que o queijo fedido que Júlio trouxe uma vez que tava todo mofado, por Deus. Nessa época eu ainda tava com Cibele, que foi correndo pro banheiro. Fique vivo, viu?
IV
(0:12) 22:13 em Paris e 17:13 no Recife
Já chorei aqui duas vezes, tu acredita? Como era o nome daquele lugar lá em São Paulo? Escreve aí. Era quente, coisa de gente fina, da alta, tinha que ter bala pra aguentar aquilo. Nunca me senti tão bonito na vida. Tu me liga uma hora dessa?
***
Vixe, Fernando. Me emocionei.
Concordo que é muito mais chique morrer em Londres que atropelado por uma moto na av. Norte.
Depois de uma carta dessa, tu não podes esquecer o perfume nem que seja uma amostra grátis.
Se cuide, que ninguém quer chorar por defunto vivo.
Ah, Fernando, traz mais perfume pro bichim. Se não tiver tempo de procurar ou não achar – agora, ficou difícil achar, em lojas físicas, alguns perfumes clássicos, como o meu amado Calandre – tenho um vidrinho lacrado, aqui em Brasília, que terei prazer em lhe ceder, se vc prometer publicar o agradecimento dele (que, certamente, há de vir).
Ma Dorado, repare só!
Até parece que tem carência.
Tu nessa mordô de país de gente granfa, tudo bacano…
Sei que tu tá na boa, só esnobando as Zoropa.
Deixa da tua enrolação e se desaprega daí, Véi.
Vem timbora, que eu já tô subindo pelas paredes pra tumá uma, com rabada e sarapatel, no bar do véio Luna, no Ipsep.
Avexa logo.
E, se manda que aqui, até pra praia a gente tá otorizado cumode de dar uns merguio.
O perfume carece não.
Mas, si tu ver um de bobeira no fri shopping, nem pensa duas vez: segure mermo.
Maravilhosa declaração de amizade-amor. Sincera e muito linda. Fiquei com muita vontade de voltar ao Recife, uma cidade que mora no meu coração. Fernando, fala com ele e dá um jeito de mandar um perfume, compra aí em Sampa, em uma importadora! 🙂