Cem mil pessoas seguiram o cortejo fúnebre de Leon Trotsky na Cidade do México, onde vivia exilado, numa homenagem póstuma a um dos políticos e intelectuais mais brilhantes e incômodos do século XX. Exilado e perseguido pela implacável polícia secreta de Stalin, desde que foi expulso da União Soviética em 1929, Trotsky foi assassinado pelo stalinista Ramón Mercader que conseguira se insinuar como simpatizante, na fortaleza onde vivia o líder revolucionario.
Com um golpe de picareta de alpinismo, Mercarder atingiu diretamente o cérebro do qual germinavam ideias e análises políticas e textos literários fascinantes, força moral e política formada na condução da revolução, que ameaçavam a ditadura de Stalin. O filósofo alemão Walter Benjamin manifestou profunda emoção com a leitura de “Minha Vida”, autobiografia de Trotsky escrita no exílio, e Bertolt Brecht, mesmo tendo ligação com o stalinismo, teria dito que “Trotsky bem poderia ser o maior escritor europeu do seu tempo” (Patrick Deville em Viva!).
No exílio, Trotsky padeceu a angústia de acompanhar, impotente, a execução pela máquina de Stalin de todos os líderes e dirigentes da revolução e a eliminação de toda a sua família, especialmente seus filhos, e dos seus seguidores politicos na União Soviética (submetidos a tortura e humilhação nos manipulados Processos de Moscou) e onde mais o trotskismo germinava, como na guerra civil espanhola. Lênin tinha morrido bem antes, Trostky foi expulso e Stalin ficou livre para promover a destruição em massa de homens superiores a ele em força moral, inteligência, cultura e formação política. Mas o “profeta banido”, expressão de Isaac Deutscher no título do terceiro livro da biografia de Trostky, era reconhecido mundialmente como personagem central na revolução russa (tanto ou mais do que Lênin), mobilizando figuras importantes do socialismo em vários países, convencidos da “degeneração burocrática” do sistema soviético.
No entanto, intelectuais e militantes de esquerda em todo mundo preferiam acreditar que todos esses dirigentes revolucionários tinham traído a revolução, a perceber a violência ditatorial de Stalin e o culto à personalidade. O poeta chileno Pablo Neruda, prêmio Nobel de literatura, utilizou sua influência para concessão de asilo político a David Siqueiros, muralista mexicano que liderou a primeira tentativa, fracassada, de eliminação de Trotsky. É surpreendente e mesmo incompreensível que milhões de pessoas no mundo inteiro tenham aceitado, justificado e até apoiado os julgamentos, as torturas, a humilhação e o fuzilamento de todos os líderes da revolução russa e de Leon Trotsky.
O mundo mudou radicalmente nesses 80 anos e o trotskismo não permite entender a complexidade da sociedade capitalista contemporânea e o “socialismo real”, que o próprio Trotsky denunciava como um socialismo burocrático, desmontou por conta das suas próprias contradições. Longe de pensar em “ditadura do proletariado” e em economia estatizada e centralmente planejada (como pensava Trotsky e Stalin), o humanismo dos socialistas neste século XXI deve ser democrático, tem que conviver e administrar o mercado e deve se apoiar num Estado provedor de serviços públicos, principalmente da educação pública de qualidade que ofereça igualdade de oportunidades. Se Trotsky vivesse hoje, provavelmente seria um destacado líder social-democrata.
Um artigo denso que mostra como Stalin não podia conviver com a sombra de uma personalidade impetuosa e brilhante que esteve na linha de frente de duas revoluções a de 1905 e a de 1917 Depois de destruir fisicamente a maior parte da Vanguarda Bolchevique , o Ditador Soviético, inseguro com a Guerra Mundial que se aproximava deu ordens a KGB para assassinar o seu adversário antes que o conflito explodisse. Trotsky vivo poderia aparecer como uma liderança alternativa . Simples paranoia do ditador, O cruel da história é que o artífice da teoria da revolução permanente morreu sem aceitar que a revolução que ele ajudou a conceber não podia mais ser regenerada porque havia se transformado na própria antítese do ideal socialista
HÁ ALGUMA GENEROSIDADE EM ACREDITAR QUE TROTSKY, SE VIVO, PODERIA TORNAR-SE UM LÍDER SOCIAL-DEMOCRATA. EM SEUS ANOS NO PODER, MOSTROU-SE TÃO IMPIEDOSO E FANÁTICO QUANTO STÁLIN.
Clemente
Você comete uma grande injustiça ao comparar o autoritarismo de Trotsky com a violência demente de Stalin, este sim, “impiedoso e fanático”. Na época da revolução, todos os bolcheviques eram autoritários, convencidos de que representavam o proletariado e que este deveria impor a sua ditadura. A primeira diferença de Trotsky (assim como Lenin) para Stalin está na capacidade de liderança e no poder de convencimento nas discussões internas do Partido. Esse era o terreno da luta política dentro do partido e nele, o prestígio, a inteligência e a argumentação eram as armas de Trotsky que Stalin não detinha. Bastaria isso para que eu tivesse certeza que Trotsky jamais mandaria matar os membros da direção do partido para impor suas decisões, jamais utilizaria de tortura e manipulação dos processos para liquidar toda aquela direção de homens inteligentes e dedicados. Stalin liquidou com toda a original direção do partido e ampliou a limpeza em toda a estrutura partidária, combinando a repressão, a mentira, a mistificação e a cooptação de neófitos.
Trotsky não faria isso. Se não por princípio moral, ao menos porque simplesmente não precisava disto para ser o líder principal do partido e do governo, tinha um enorme prestígio, grande capacidade de argumentação e convencimento e poder real. Durante a guerra civil, comandando o Exército Vermelho, Trotsky foi implacável e violento, é verdade, principalmente com os desertores. Mas era guerra, Clemente, de um exército fragilizado e esgarçado. Trotsky era um homem do seu tempo na implantação de uma ditadura que entendia ser a base para o socialismo. Deve ter sido impiedoso em alguns momentos, o que é imperdoável mas muito diferente do que fez Stalin para se impor como O ditador.
Em 1924, quando Lenin morreu, Trotsky era o homem mais poderoso da União Soviética combinando o prestígio político construído na insurreição ao lado de Lenin e na condução direta da vitória da guerra civil com o poder real de comandante das forças armadas. Poderia ter esvaziado o poder de Stalin com inteligência, competência e poder real, além do testamento de Lênin sugerindo afastar Stalin da secretaria geral do Partido. Talvez por ser tão convencido e arrogante, deixou Stalin suceder a Lenin. Esse foi o seu grande erro político o que o torna meio responsável pela ditadura autocrática de Stalin. Perdeu, provavelmente, por arrogância e certeza da sua superioridade que o fazia desprezar Stalin. Ficou devendo isso à história. Mas, não, Trotsky não teria sido um governante igualmente “impiedoso e fanático” como Stalin.
Sou muito pessimista ao perceber que isso se repete ao longo da história. Qualquer pensador(a) que enxergue melhor a realidade contemporânea, não é compreendido(a) no seu próprio tempo.
Artigo importante de Sergio Buarque, a recordar os 80 anos do assassinato de Trotsky. “O que teria sido não sabemos” – assim resumo meu ceticismo sobre as chances de Trotsky ter se transformado em democrata. Se ficamos apenas no registro histórico, do Trotsky homem em fuga e vítima, o que ele revela mais claramente é a orquestração, o fanatismo, a disciplina e a organização de seus perseguidores. Sobre a pergunta central por trás desse artigo e de muitos dos estudos sobre um experimento social que durou 70 anos (1918-1989)– como e por que se perverteu a utopia do século XX? -, ainda não vi melhor que o romance histórico de Leonardo Padura, “O homem que amava os cachorros” (Boitempo, 2015). A 1ª edição desse livro, em espanhol, saiu em 2009 pela Tusquets. Em 2010 saiu uma pequena edição em La Habana, pela Unión de Escritores y Artistas de Cuba. Publiquei resenha em “Política Externa”, vol.21 no.3, jan-mar 2013.
O assassinato de Trotsky talvez seja o mais dramático caso de aplicação da ideia de que “o fim justifica os meios” – para os autores do crime, é claro. Em 1990 foi publicado um livro do irmão do assassino de Trtosky, Luis Mercader (escrito com o jornalista Germán Sanchez), “Ramón Mercader mi Hermano. Cinquenta años después”, Espasa-Calpe S.A., Madrid. Luis Mercader fugiu bem jovem para Moscou no fim da guerra civil espanhola e conseguiu voltar para a Espanha depois da queda de Franco. Diz ele: “Meu irmão não era um vulgar assassino, mas alguém que acreditava na causa do comunismo. E naquele momento os comunistas do mundo todo consideravam Trotsky um perigo para o movimento e para a União Soviética.” No romance de Padura, esse depoimento é uma dentre inúmeras fontes. O atentado mencionado por Sérgio Buarque, em que participou Siqueiros, revela o ambiente entre os comunistas locais contra quem na época era classificado de “traidor”.