Cheguei a Edinburgh tarde da noite, depois de uma triangulação acelerada. Senão, vejamos. Tomei o trem às quatro da tarde do Centro para o aeroporto de Copenhagen, de onde decolamos em torno das seis horas locais. Não, não houve nenhuma correria desenfreada, mas o tempo foi justo, cronometrado, sem espaço para incursões à livraria nem brecha para comer uma salsicha. Chegando a Bruxelas – a Lufthansa me acomodou em poltronas confortáveis com direito a algumas amenidades no voo de sua afiliada, a Air Brussels -, atravessei o aeroporto inteiro para chegar ao portão B10, meros dez minutos antes de anunciado o próximo embarque. Isso porque os passageiros que chegam pelo terminal A e que têm conexão pelo B, precisam “sair da Europa” e, assim, enfrentar mais um controle de segurança. Tirante as esquisitices britânicas, até perdoáveis – ser parte da Europa sem sê-lo totalmente -, fato é que nem tive tempo para uma Stella Artois de barril, o que é sempre uma lástima.
Depois voei para Edinburgh nas mesmas condições de ventos fortes que dificultaram muito o pouso na Bélgica, a ponto de até passageiros experientes ficarem apreensivos. Mas, afinal, chegamos ao aeroporto escocês depois de mais oitenta minutos no ar. Pena que em ambos os trechos foi servido o mesmo prato de frango ao curry. Com fome, não acusei a repetição e comi com apetite mesmo porque o condimento estava como eu gosto: denso e picante.
O que não estava nos planos era que a fila de controle de passaportes estaria enorme, e que os pratos que eu comera em ambos os voos começariam a me pesar tão logo desembarcasse, pedindo uma ida preventiva ao banheiro, antes que virasse emergencial. Também tinha em mente que o último ônibus para a região de Haymarket sairia às onze da noite, logo era bom que a fila andasse rápido para que pudesse pegá-lo. Foi com esse espírito que enfrentei a imigração. Já sem muita paciência para responder às perguntas idiotas, eis que ainda me coube um novato que, excitado, começou a folhear meu passaporte freneticamente. Fazia-me as perguntas que se fazem a fedelhos da idade dele. Se estou de férias, se levo dinheiro, se tenho reserva de hotel e como pretendo dividir o tempo entre os dois destinos que me trouxeram às Ilhas. Ora, vá se foder, era o que me dava vontade de dizer. Ele agia como se estivesse querendo desmascarar um plano secreto que lhe pudesse valer reconhecimento público, uma medalha, um aumento, ou ascensão meteórica na carreira de carimbador de documento. Tudo isso às custas de uma diarreia anunciada, um ônibus que acelerava para sair, uma passagem pelo caixa eletrônico e, lá fora, uma noite chuvosa que não me facilitaria em nada o trajeto entre a parada de ônibus e o pequeno hotel.
Quando eu disse que Edinburgh para mim era mera escala sentimental, já que fazia décadas que não a visitava, ele se perdeu na abstração dos anos – talvez a idade dele -, e veio me perguntar o que eu lembrava de ter visto da última vez. O curry fazia estragos na digestão e sempre tive com caras do tipo dele – a turma do regulamento, que vive em função da estabilidade e da aposentadoria – o mesmo respeito que meu pai tinha por médicos jovens: zero. Então disse: minha recordação mais cara é que estava com um primo e dois amigos portugueses. E que, mesmo muito jovens, enchíamos a cara de uísque Bells, e passávamos boa parte do tempo acordado em estado de total embriaguez. Disse-lhe que tinha gostado muito de Inverness e Fort Williams, mas que não tinha certeza se voltaria à última mesmo porque a mulher que eu quis comer por lá devia ter morrido já há uns bons anos, se é que continuou bebendo com a mesma intensidade com que o fazia naquela noite de farra.
Como ele me olhava com uma expressão cada vez mais intrigada, eu acrescentei que sentia a saúde se debilitar de forma consistente e, inconscientemente, estava visitando alguns lugares que me foram importantes em dado momento da vida. Assim, se tiver que ficar grudado numa cama hospitalar terei no que pensar nas horas sem fim das internações. Já prevendo qual seria a próxima pergunta imbecil, se ele fosse mesmo tão idiota quanto me parecia, tirei do bolso do paletó o envelope com o seguro-saúde, um atestado de que não queria me prevalecer do contribuinte britânico, se alguma coisa me acontecesse de ruim. Pois foi exatamente o atestado de seguro que ele pediu. Então só faltei esfregar-lhe o papel na cara e, àquela altura, não me importava em ter acesso ao país recusado, contanto que pudesse ir ao banheiro.
Liberado, por fim, depois que levas de estudantes passaram pelos demais guichês sem dar maiores satisfações, fui o último passageiro a entrar no ônibus que ia para Haymarket. O vento frio e molhado da calçada colocou as coisas em seus devidos lugares, e senti que a situação estava sob controle. Mas ao me preparar para dormir nessa madrugada que se anuncia cheia de ventos – quando é que ficarei livre deles? -, foi a imagem mofina do burocrata a última que me veio à mente. Mas Edinburgh o redimirá.
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Hoje, a 13 de janeiro de 2015, os maus sentimentos que se formaram na chegada ao aeroporto já tinham se dissipado e eu me sentia quase bem apesar da curta noite de sono. É verdade que levo algumas horas, quando não dias ou semanas, para me desintoxicar por completo de um idiota como o sujeito da imigração. Não sei onde estão as raízes de tamanha fobia, mas desconfio que as conheço bem e tudo que esteja entrelaçado com a mediocridade, de forma geral, me provoca desconforto e sofrimento. É como se o embate daqueles minutos em que eu arremeto como um urso lancetado, me drenasse as forças e, qualquer que fosse o resultado, eu sairia sempre perdendo. São lutas inglórias pois a força do sistema é gigantesca. Mas bastou subir para o café da manhã – bastante honesto para o precinho camarada que consegui aqui -, e logo me vi de volta à virada dos anos 70-80. Quase sorri.
Isso porque tem algumas coisas na Grã-Bretanha, em geral, que simplesmente não mudam. E à medida que fui me tornando conservador, certas instituições desse país viraram ícones que não canso de reverenciar. É o caso do café da manhã de locais do tipo bed and breakfast – ou “B&B” – como esse em que me encontro, em Coates Gardens, Edinburgh, Escócia. Enquanto o mundo todo parece ter evoluído rumo a fórmulas menos convencionais de café da manhã, seja optando por linhas biológicas, como na Escandinávia, seja cedendo à praticidade de ovos industrializados, aqui tudo permanece como era há quarenta anos. Assim, a prato quente principal veio na medida de minhas expectativas: salsicha, cogumelos, ovo estrelado, bacon, feijão doce, pudding e torrada integral. Para quem quisesse, a mocinha búlgara trazia um pote de porridge, o que não foi meu caso. No bufê, discretos potinhos de iogurte e umas frutas mais decorativas do que saborosas. Do que mais se precisa?
Do jornal da manhã da BBC, voltado para o público que come o desjejum àquela hora, e com um bule de chá quente para aquecer a alma no salão de amplas janelas que se debruça sobre a rua – um nível, portanto, acima de meu quarto – já me sinto reconciliado dos aborrecimentos da chegada. Afeiçoar-me é tão fácil quanto me encolerizar. O detalhe que mais me chamou a atenção, contudo, foi a música de fundo. Como se tivesse entrado numa máquina do tempo que nos permitisse reatar com sensações antigas mas bem vivas, eis que escutei alguns hits do Abba. Os suecos nunca deixaram de fazer grande sucesso nessa parte do mundo e acredito que o musical Mamma Mia tenha acendido uma vela no coração dos saudosistas. Certo é que eles são onipresentes onde quer que se peça música genérica, ligeira, e que conectará todos a instâncias muito específicas da vida.
No meu caso, já nem falo da música Fernando que me rendia tantos olhares nas populares discotecas de Cambridge e Manchester, lá pelos verdes anos. Aos primeiros acordes, as meninas da escola se voltavam para mim e diziam: agora é comigo, você prometeu. Então lá ia eu dançar coladinho com uma belga, uma francesa, uma italiana ou espanhola. Claro, também com brasileiras ocasionais. Mas nesse caso, a obviedade tirava a graça das maquinações do inconsciente. A pergunta que me faço é: como se sentem os jovens a respeito dessas músicas? Eles as registram, de alguma forma, ou simplesmente ignoram o que ouvem e se refugiam nos desvãos de seus fones de ouvido?
Sim, é engraçado que uma Meca de roqueiros como o Reino Unido possa reciclar um trivial antigo e previsível. Eu até entenderia que assim fosse na Alemanha, país que não parece ter uma música popular contemporânea de qualidade mínima. Aqui, só vejo uma explicação satisfatória. A memória coletiva guarda boas recordações dos dias vividos na trilha dos suecos. A Grã-Bretanha é sim um lugar muito reconfortante. Afinal, quando aqui cheguei pela primeira vez, não se escutava ainda o Abba. Tom Jones era a unanimidade. Depois viria Niel Diamond. Falo de ambientes genéricos, não de redutos de clubbers, bem entendido, o que nunca foi minha xícara de chá, como eles diriam. Mas um dia terei também que render tributo aos australianos. Mas essa já será outra história e se ambientará mais em São Paulo do que em Londres.
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Dia desses jantava com Lavínia na Dinamarca quando uma mocinha de vinte anos me chamou a atenção na mesa ao lado. Nossa, como se parecia com alguém que eu não via há tantos anos. Sendo o restaurante um local despretensioso e quase popular na Escandinávia, a garota em questão era talvez o produto acabado de uma década de fidelidade ao menu da casa. Isso porque era bem gordinha e, nessa idade, imagino o quanto os quilos não deviam ser pesados. Como arranjar um namorado e deixar desabrochar a feminilidade quando nada parece se comparar a um litro de Coca-Cola no copo com um imenso saco de batatas fritas? No rosto angelical, os olhinhos azulados mal se fixavam na interlocutora, uma moça magrinha e também bem discreta, mas nitidamente mais harmonizada consigo própria. Conversando aos sussurros, como é comum na região, a gordinha, sentada à minha diagonal, não perdia de vista a cestinha de frituras com lulas, camarões e pedaços de peixe. Ela comia os nacos com apetite, depois de mergulhar cada pedacinho num dos três potes de molho. Foi nesse cenário que não pude me furtar a um pensamento sobre a filha de Dolores, uma mulher com quem vivi desde quando a menininha dela ainda era bem pequena, até os sete anos, salvo engano. Ela, logicamente, morava conosco. Se perdi Dolores de vista e só a vejo uma vez a cada cinco anos, é óbvio que também perdi o contato com a filha com quem estive pela última vez já há uns quinze.
As lembranças mais vívidas, porém, estão ambientadas na parte baixa dos Jardins, num amplo apartamento que aluguei para acomodar melhor a nova formação familiar. Não sei o que ocorrera à filha lá atrás, quando Dolores foi mãe. Nunca conversamos muito a esse respeito, na verdade, porque implicava ter que falar de relações passadas, e isso a deixava catatônica. Ademais, ela nunca foi de se aprofundar muito em temas que lhe causassem desconforto. Preferia mudar de assunto, tomar um drinque e aumentar o volume da música. Até de dançar era capaz. Contanto que ficássemos sempre nas camadas mais superficiais do não-diálogo. Ela era tida por muitos como uma mulher frívola embora vez por outra, isso eu testemunhava, baixasse num terapeuta para algumas sessões por recomendação de uma amiga, o que atestava que não lhe passava despercebido que precisava de ajuda. Se daquele tempo já não lembro de quase nada, apenas do todo, a figura da criança me traz reminiscências confusas. Dolores queria que eu a tratasse como pai. Mas, por outro lado, se escorava na figura do próprio pai dela, portanto do avô da garotinha, para ancorá-la afetivamente, a síntese do universo de referenciais masculinos de Dolores, como ocorre muito com as nordestinas. Tão forte é o vínculo que chamam os pais de “painho”, mesmo quando sexagenárias. Ora, por que eu haveria de brigar por afetos? Onde está escrito que devemos canalizar o carinho pelos caminhos mais estreitos? Assim sendo, eu me contentava em ser apenas um companheiro de brincadeiras.
Muitas vezes voltávamos tarde demais para casa, quase na manhã dos domingos. Ora, era justamente o dia em que ficávamos a sós com a menininha em função da folga das empregadas. Então, sonolentos, nos revezávamos para distraí-la. Eu às vezes adormecia e, quando menos esperava, lá estava ela abrindo meus olhos esbugalhados, ou enfiando o dedo em meu nariz. Depois ela cresceu e eu manteria durante bons anos um contato com Dolores. Ambos já estávamos com novas companhias e tínhamos nos separado de forma bastante indolor. Dolorosa foi sim a época em que chegamos à conclusão que vivíamos um relacionamento que tinha data para terminar, e que não duraria a eternidade. Esse período foi sofrido. Depois tudo se arranjaria bem, salvo pelas turbulências inerentes a quem confia o destino imediato a advogados que, querendo se mostrar mais necessários do que são, fabulam uma narrativa para o casal que quase nunca reflete o que houve de intenso e verdadeiro entre ambos. Mas como os contatos se mantiveram vivos mesmo em meio à procela, eu via a filhinha dela e, vez por outra, dizia a Dolores – uma mulher inteligente – que não se empenhasse em colocar tantos obstáculos a meu convívio com a pequena. Mas de pouco serviu. Eu só a veria umas poucas vezes durante a adolescência e, mais tarde, em idade universitária, estive com ela por acaso nos Estados Unidos. Nesse intervalo, convivi com quase uma dúzia de enteados. No Texas, quando nos vimos em Fort Worth, ela já estava muito parecida com a dinamarquesa que vi em Copenhagen. Talvez alguma coisa não estivesse correndo de maravilha, sei lá. Mas como deixá-la à vontade para discutir o tema se Dolores tinha criado uma enorme barreira emocional entre nós? Dolores, sem ser bonita, não era feia; mas nascera sem bom senso. Espero que ela e a menininha estejam bem. Se duvidar, Dolores é capaz de já ser avó.
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Ela se chama Zina, a tempestade de neve que caiu sobre a velha capital síria. Pela primeira vez em três anos, não houve registro de morte violenta. As crianças não foram à escola – quantas será que ainda funcionam? – e os combatentes acenderam um cigarro e deixaram de lado os fuzis. Aqui na Escócia, também nevou bastante ontem. Primeiro, por volta do meio-dia. Depois, no finalzinho da tarde, depois de quase duas horas de frio cortante e de um surpreendente céu claro. Então pela noite, senti fome. E lembrei do restaurante chinês que vira em Haymarket Terrace. Mas quando subi até a calçada, já que meu quarto fica no subsolo, vi que a neve agora era coisa séria e um sopro violento a revolvia. Quando os flocos iam chegando ao chão, uma tesoura de vento os remetia de volta para cima. Ainda fiquei pensando se deveria mesmo caminhar dez minutos até lá. Por alguma razão, não confio lá muito nessas botas e temo escorregar e cair. Mas é cedo para deixar me intimidar por tão pouco. Pensei na bravura dos finlandeses e decidi que iria. Abotoei bem o casaco russo, enrolei o cachecol sueco em torno do pescoço brasileiro, e lá fui eu. Não há como negar que a neve tem um efeito reconfortante milagroso. Não foi por outra razão que houve trégua por uma noite em Damasco, cidade que trago no coração. Nunca imaginei que um dia ela se tornaria uma praça de guerra e de atrocidades tão afloradas. Se soubesse, teria caminhado mais pelo mercado, teria captado mais imagens do que as que armazenei nas visitas que fiz. E Aleppo? Lá era recebido feito um rei pelos meus amigos da Kouk Hazar. Eis outra cidade que também foi agraciada com a neve. E como ambas, Beirute, Jerusalém, Amman, Ramala – todos lugares tão queridos, a que meu coração é tão grato. No restaurante chinês, tomei uma sopa de wonton e, na sequência, comi um peixe branco e tenro, com cogumelos pretos e enrugados, perdidos em lâminas grossas de gengibre. Uma delícia. Disse à chinesinha que gostava mesmo era da pimenta de Szechuan e, como eu era o único cliente do lugar, ela me trouxe um preparado que ela própria maquinou. Veio num pires e estava divina. Foi botar uma colher na boca e sentir o suor porejar na testa. Continuo muito experimental com as reações do corpo, poderia ser mais prudente. Mas comi tudo com apetite enquanto lia o jornal.
Em dado momento, parei. Da rua, vinha um uivo intenso. Olhei pela porta envidraçada e vi que nevasca ganhara em intensidade. O vento era fortíssimo e os flocos beliscavam qualquer parte do corpo descoberta. Na volta, só com os olhos de fora, tive que fazer um caminho meio oblíquo para chegar ao hotel. Simplesmente não dava para encará-lo de frente, ou seja, descer em linha reta de Haymarket até Coates Gardens. No bolso, tinha o recorte que mostrava a grande mesquita de Douma coberta por um manto branco. Era uma foto bonita embora meio esmaecida, como são as de jornal.
Chegando à recepção, cumprimentei a atendente e, de propósito, mirei o vão entre os seios bronzeados. Engraçada essa coroa. Deve ter uns sessenta anos, é bastante feia, mas tem um baita orgulho desses peitos. Mesmo com uma temperatura ártica dessas, ela não hesita em mostrá-los, o que significa deixar a garganta desguarnecida. Sei lá, vá ver que a garganta também é profunda. Bem, apesar de tantos dotes, só vou até aqui. No quarto, tirei as botas pesadas e fiquei um minuto colado no aquecedor até sentir o sangue circular. Aqui em Edinburgh tenho sentido mais frio do que na Lapônia ou em qualquer outro ponto por onde tenha passado entre São Petersburgo e Copenhagen. Salvo, talvez, no navio, na chegada a Estocolmo. Não sei como Lavínia aguentou, mas quem é de Garanhuns enfrenta qualquer parada. Fui dormir feliz ontem. Pena que em Damasco a neve já deveria ter derretido e a carnificina por certo retomou. A propósito, hoje faz uma semana que os delinquentes entraram na redação da Charlie Hebdo.
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Quando passei por aqui pela primeira e única vez, estava com meu primo Zé Ricardo e dois amigos portugueses que conhecera em Cambridge. Um deles, Pedro, morava na mesma casa que eu, na 21 Girton Road, morada da família Hirst e da estridente Audrey – nossa hospedeira. O irmão dele, Luiz, só chegou às vésperas de nossa viagem à Escócia. Ficamos bons amigos e eu levava Pedro comigo vez por outra à casa de Fernando Henrique Cardoso onde D. Ruth nos recebia com carinho, já que eu era amigo de Bia e Luciana. O pai dos portugueses era pelo jeito um homem muito bem sucedido e ainda tinha negócios em Angola. Salvo engano, eram ligados ao café e à distribuição cinematográfica. Quando curto de grana – o que acontecia muito e só depois eu saberia por quê -, Pedro ia até um escritório próximo à estação Green Park, em Londres, bem ao lado do Hard Rock, conversar com um grego que geria os interesses da firma na Grã-Bretanha. Cheguei a acompanhá-lo mais de uma vez. O grego acendia um cigarro no outro e os apagava num cinzeiro cheio de areia. Sorridente, meio debochado, sempre tentava oferecer menos do que Pedro pedia.
Daquela viagem à Escócia, eu lembro de muito mais coisas do que das viagens subsequentes que fiz ao país – todas a trabalho e mais centradas na região de Glasgow com o pessoal da ICI. Mas da velha viagem de estudante, me ficaram os porres colossais de uísque Bells que tomamos; a vez que Pedro meteu a mão na popa da bunda de uma velhinha em Fort Williams enquanto ela nos servia o café da manhã; as paisagens de Inverness e, sobretudo, as muitas conversas que tive com meu primo. Ausente do Brasil há um ano e meio, ele foi meu canal de atualização e nem todas as notícias que trouxe me agradaram muito. Apesar de boas, na ótica dele, eles me soaram como extremamente desagregadoras para o mundo que eu construíra, e, se elas faziam sentido para ele, para mim significavam todo o oposto. Ainda hoje sou bem diferente de meu primo. Eu tinha razão de ter esses temores. O sucesso financeiro de meu pai e a mudança de apartamento me desenraizavam à distância. Mas parecia que o Recife que eu encontraria na volta não era bem o que eu deixara. Parte dele, eu levaria décadas para recuperar. Outra ficaria mesmo perdida com a adolescência que chegara ao fim.
Fato é que estivemos aqui de passagem. Mas as imagens do castelo eram as mesmas que eu guardava. Hoje, depois de longa caminhada, me detive na parte alta e me policiei para não abrir os jornais e só me concentrar no que via no passeio. Conversar aqui é um verdadeiro prazer. As pessoas são muito simpáticas, mas o sotaque é cruel. Faço um grande esforço para não parecer que as estou corrigindo. Fiquei maravilhado com a sofisticação dos bares e das casas de uísque. Ademais, o casario é massivo, compacto, cheio daquela velha e boa fuligem que para mim será sempre a marca desse Reino Unido a que me rendi depois de dois ou três anos de relutância. Mas que, afinal, me conquistou para sempre. Por que tanta relutância? Ora, ainda rapazinho, não queria que Paris ficasse enciumada. Ela era minha amante do outro lado do canal. A propósito, hoje comprei a passagem de trem para a próxima escala. Foram trinta libras esterlinas bem empregadas, se tudo der certo. Digo isso porque as condições de navegação no estreito têm que estar boas para que eu chegue ao destino. Onde será? Belfast, ora.
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Hoje estive pensando no quanto as coisas que fazia com facilidade até pouco tempo atrás começaram a ficar difíceis. Onde isso vai parar? Sem enveredar por um fastidioso exercício de autopiedade, acordar pela manhã e dormir à noite eram coisas tão simples quanto indicam os verbos. Mas hoje não são mais. Quando acordo, geralmente em duas etapas, a definitiva é coroada por uma verificação no relógio. Quanto tempo dormi? Recentemente, desde que passei a usar a máquina contra surtos de apneia de sono, tenho batido alguns recordes quando não me reviro muito na cama. Dia desses, dormi oito horas. Devo ter acordado uma vez de madrugada para urinar, mas é uma marca extraordinária. É claro que isso se reflete na qualidade do dia. Passo-o exultante, na ponta dos cascos, e com a cabeça acelerada até em demasia.
A primeira coisa que faço ao despertar é ir ao computador e ver o que aconteceu no mundo. Esse vício foi inoculado no 11 de setembro quando, morando em Higienópolis, na discreta companhia de Dona Celina, comecei a acompanhar uma sucessão estranha de fenômenos. Ali se configurou o antes e o depois. Isso feito, vou ao banheiro, tomo um Benicar de 20 Mg, faço a barba e entro no chuveiro por bons vinte minutos. Exceto em São Paulo, onde gastar tanta água é sacrilégio. Enxugar-me já não é uma tarefa tão fácil. Salvo quando estou no Recife e deixo que o vento do mar me seque o corpo. Mas quando estou fora do país, especialmente em lugares como a Escócia no inverno, tem que ser na base da mão mesmo. Então sento na cama, depois de esfregar o tronco, e vou me ocupar dos pés com as pernas cruzadas. Mas o ritual não acaba aqui. De uns tempos para cá, as pernas passaram a ficar ressecadas e me convenceram a passar hidratante, o que antes eu só apreciava no corpo alheio. Agora estou curtindo friccioná-lo. É como se desse um passo adiante no processo de me cuidar. É claro que levo mais tempo para me vestir e que calçar as meias é a parte mais chata. A segunda é amarrar o cadarço dessas botas estilosas, mas pesadas. Quanto tempo transcorreu desde que abri os olhos? Ora, é claro que dependerá também da disponibilidade de tempo. Mas pode ir de meia hora a hora meia. E à noite? Como meus dias são assumidamente intensos, é trabalho delicado sair do estado de alerta e entrar em repouso. Quando sinto os primeiros indícios de sono, tomo mais um banho. Sou a única pessoa que conheço que se perfuma para dormir e passa gel no cabelo. Acho que foi de tanto mamãe falar que nunca se sabe se um médico pode ter que ser chamado à noite. Que nada, nesse caso não dormiria nu, mesmo no maior frio. É porque gosto mesmo. Mas depois do banho, vem uma nova sessão de creme hidratante e uma visita à caixinha de remédios. Então tomo um contra o colesterol; outro para dormir – Stilnox; e, eventualmente, um Lexotan para serenar. Ultimamente também me recomendaram uma aspirina que compro aqui na Europa numa dosagem específica. Então leio por mais uns minutos até que começo a repetir os parágrafos. Já não assimilo mais nada. Então, feliz, tiro os óculos, desligo a lâmpada de cabeceira e durmo. Sempre torcendo para acordar bem no dia seguinte. E começar tudo de novo. Até agora funcionou. E amanhã?
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Ultimamente passei a comprar só os livros imprescindíveis. Os que não o são, trato de lê-los na livraria nem que tenha que ficar duas horas sentado no café. Muitas vezes eles são tão bons que termino comprando-os depois de ter lido a metade. Outros tantos eu leio rapidamente, me atendo ao começo, meio e fim dos parágrafos à procura de alguma gema. Se as acho, reduzo o ritmo. Caso contrário, sigo em frente. É tanta coisa para se ler hoje que um pouco de superficialidade não fará mal a ninguém. Mesmo porque, nos temas preferidos, haverá sempre um certo grau de redundância. E o bom é o ineditismo. Mas hoje – sinal dos tempos – sucumbi a dois títulos que me pareceram imprescindíveis, dada a qualidade dos trechos que li. Ambos são lançamentos de 2014: How to live, de Vincent Deary. Na quarta capa, a síntese que me chamou atenção: Sooner or later, however, your current world will change, the present season will end.
O outro se chamava Being Mortal – Illness, medicine, and what matters in the End, de um certo Atul Gawande. Pode bem ser que ambos se revelem uma sopa de chavões. Se forem, os troco na mesma livraria quando chegar a Dublin. Importante é essa preocupação. Até o ano passado teria sido quase impossível que livros assim me chamassem a atenção. Eu próprio não perdoaria o gosto mórbido. E hoje, no entanto, tê-los a meu lado não me parece de todo despropositado. Pelo contrário, trazem até algum conforto e fazem cócegas no espírito. A caminho dos 57 anos, não quero acreditar que as cortinas estejam perto de se fechar. Mas nunca me perguntei tanto sobre pequenas e grandes coisas como nessa fase da vida. E talvez encontre nesse tipo de literatura um empurrão para ler as entrelinhas desse outono.
E, serena mas rapidamente, caminhar pelo leito de folhas na alameda de árvores nuas. Isso é que eu chamo de elaborar o fim. Com poesia barata e tudo o mais. Mas não é a toa que esses pensamentos me acossam sobremodo aqui em Edinburgh. Ao passar por aqui, aos 18 anos, eu era a própria encarnação da juventude e da esperança. Jovem, brilhante e bonito, eu tinha tudo. Inclusive muitos anos pela frente. E agora? Não sei. Só sei que amanhã gostaria de dormir em Belfast. Espero que os ventos não impeçam a travessia. Quaisquer travessias.
Belo texto em que um assunto poxa outro, uma lembrança atropela a seguinte. Pegando carona, fiquei lembrando coisas do tempo em que caminhava pelo calçadão da praia, sem máscara, sem precisar driblar os que se aproximavam, só pensando em cascata.
Muito obrigado, David. Fico genuinamente feliz que alguém tenha lido essa tirada longa. Gosto também desse fluxo contínuo, e tenho sido estimulado por meu amigo Homero Fonseca a me exercitar nessa linha para produções futuras, digamos assim. Sua imagem é muito boa. Nos tempos em que eu caminhava muito pela praia, antes que a coluna começasse a apitar e o peso a incomodar, eu tirava as melhores conclusões desses passeios em que ficava pulando de um assunto para outro. Fico feliz que você tenha se visto nessa catarse de 5 anos e oito meses atrás.