Eu não quero dizer leviandades nem confundir causa e efeito. Não quero ver heroísmo onde pode ser que só haja egoísmo e escapismo, nem tampouco glorificar uma posição que resulta, fundamentalmente, de minhas comodidades e da mão de cartas que a vida me deu para jogar essa rodada. Mas seja coincidência ou não, o Brasil pós-Bolsonaro me inoculou uma espécie tal de resistência à terra que só mesmo neste espaço eu ousaria abrir o coração para descrevê-la. Em outros veículos, acho que teria alguma vergonha, senão bastante constrangimento.

Solto no meio de Paris, o que está longe de ser a Ilha do Diabo, de Papillon, está a meu alcance, com uma mensagem de voz por WhatsApp, resolver a vida e voltar para o Brasil à hora que quiser. A passagem está lá, aberta a todas as possibilidades, pilotada por uma agente competente. Demais, o cerco aqui se fecha e é possível que voltemos a reviver o confinamento radical da última primavera. O vírus pode até parecer mais brando, mas duvido que o fosse comigo – o alvo dotado das características com que ele sonha. Para piorar, eu já não sou o homem desenvolto que era em março, quando carregava uma cestinha até a feira atrás da Sorbonne para me abastecer, e voltava assobiando. Longe disso. Hoje as costas incomodam uma enormidade, as dores lombares me encurtam o fôlego e diminuem o raio de ação. Eu já não me sinto confiante sequer em puxar a mala de rodinhas na rua, no dia em que a necessidade aparecer. Para completar, embora sujeito a rápida deterioração no período pós-eleitoral, o quadro do Brasil está estável e inspira mais confiança do que o daqui. Em ambos os lados do Atlântico, deveremos passar o Natal em nível igual de apreensão – com um viés mais benevolente aqui do que aí, apesar do inverno. Mas resumindo: o Brasil acena agora com possibilidades mais atraentes de sobrevida, pela primeira vez desde abril – por curta que possa ser a janela. Isso dito, por que não volto? O que estou esperando? Que espécie de síndrome se apossou do sujeito independente que sempre fui, a ponto de achar que, decidido a partir, era possível que pedisse ao taxista, antes de chegarmos ao aeroporto, para voltar ao começo? E que, chegando em casa, abriria os braços e diria às paredes nuas: alarme falso, me voilà, estou de volta!

A verdade é que gosto de Paris no outono. Estou bem instalado no studio da rue des Fossés Saint Jacques. Gosto de dormir vendo a cúpula do Panthéon e acompanho de perto a vida política francesa e europeia. Como sabido, Paris nos supre de emoções tais que é até fácil prescindir das manchetes alheias. Preciso dizer que a degola do professor Samuel Paty por um jovem checheno sacudiu os brios da França? Posso negar o quanto me preenchem as visitas quase diárias às livrarias favoritas, que regurgitam de novidades? Mas devo admitir que, com maior ou menor intensidade, tudo  isso sempre esteve à mão. E, evidentemente, há quase 40 anos São Paulo funciona como a plataforma ideal para as idas e vindas, inclusive para o Heimat nordestino. Seja como for, é melhor me acostumar à ideia de que não mais será assim por algum tempo e, acreditem, é uma perspectiva que está longe de me desesperar.

O que me aflige é outra coisa.

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Ora, quando um alucinado esfaqueou o capitão-candidato uma rua de Juiz de Fora, eu estava passando uns tempos em Chicago para trabalhar no último romance.

No mais, vinha de um ano às voltas com as candidaturas do PSDB de São Paulo, ajudando a montar um Programa de Governo meio atemporal, é verdade, mas que embalou os meses compreendidos entre outubro de 2017 e setembro de 2018. Foi naquela primeira semana de setembro que vi que perdera um país – para dar à narrativa o tom de exagero que ela merece. Dias antes da tentativa de homicídio em Minas Gerais, em passagem pelo Recife, eu fora colhido por uma carreata de Jair Bolsonaro, um sujeito de quem eu até então mal ouvira falar, e que em momento algum levara a sério. Embalado por uma reflexão bisonha, eu achava que a baixíssima qualificação de seus apoiadores – majoritariamente pessoas que, sob mais de um aspecto, eu via como idiotas -, esvaziaria em poucos dias as fragilidades da propositura (sic) do capitão. É claro que o contraponto a ele não poderia ser alguém do PT, mas essa possibilidade tampouco me passava pela cabeça.

Ora, tínhamos pelo menos 4 bons candidatos para ocupar todos os espectros do Centro, e eu ainda não via que era nessa fartura que morava o grande perigo. Assim sendo, a despeito de ter perdido qualquer respeito por Alckmin quando o vi se apequenar diante de Doria, sabendo que ali ele podia perder o comando do partido e do jogo, eu não tinha dúvida de que ele conseguiria aglutinar o Centro, nem que para isso tivesse que fechar o nariz para certas composições. Mas ora, no âmago do PSDB paulista, a partir do próprio Doria, eu já vira de perto durante meses que não dava para não fechar o nariz em instâncias muito menores. Logo não seria fato novo para o ex-governador ter que se adequar aos desafios do cargo pretendido. E de fato, até a Semana da Pátria daquele 2018, Alckmin vinha se recuperando bem. Mas com a facada de um transtornado, o tal capitão estava condenado a ganhar a eleição de uma cama de hospital. O lixo ideológico e propagandístico se transformara em capital político.

É dessa constatação que ainda hoje não me curei.

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Desse dia malfadado em diante, pouco fiquei no Brasil. Nesses quase dois anos de bolsonarismo entronizado, foi como se a poeira desse credo se espalhasse pelas superfícies que eu toco. E que, ao levar o dedo ao nariz, num ato reflexo, eu me contaminasse com um vírus que, embora menos letal que o corona, me causasse engulhos parecidos aos da morte. A força de propagação dele é tão ou mais surpreendente do que a do corona. De absorção fácil pelo organismo social, quanto mais idiota você é, mais você lhe capta os mitos fundadores. E mais se empenha em formar prosélitos, militantes e arrebanhar seguidores.

Quer percebamos ou não, a vida social brasileira se ressentiu uma enormidade. Se antes as dicotomias entre esquerda e direita dividiam as famílias e revelavam um falso dilema, o capitão logo se assenhoreou de um projeto político. Esse fato isolado o fez colocar em marcha um bloco macabro e obscurantista, em que a entronização da ignorância funciona como grande ativo – como nos tempos do PT -, e a petulância e a mentira viram armas de defesa. É evidente que não fosse o coronavírus, eu já estaria de volta à casa há algum tempo, e já teria regressado aqui pontualmente, como sempre foi de regra. Obrigado pelas circunstâncias a optar, cravei por enquanto no que me parece o mal menor. O que mais me dói é ter sucumbido à vala comum do maniqueísmo que tanto me afligia. Ou seja, aquele que divide a cidadania entre inimigos e simpatizantes do capitão. Quem está entre esses últimos, que não são poucos, faz com que uma força centrípeta me desloque da órbita do Brasil. Vendo-o de cima, como uma terra que parece não ser mais a minha, como um celeiro de experimentos absurdos a que nos levou certa tempestade perfeita, fico entristecido, vulnerável. Pela primeira vez, percebo como o Brasil exercia uma força gravitacional importante sobre meus humores. Quando tudo dava errado fora, ver a terra brasileira da janela do avião, saber que já sobrevoava seu território, me curava de todos os males. Hoje é todo o contrário. É a pátria-paria a que aludiu não sem orgulho o Chanceler do capitão.

Posso até voltar ao Brasil nos próximos dias. Mas seria com o mesmo ânimo de quem encara um casamento de conveniência ou uma união de fachada para cumprimento de alguma formalidade. Por enquanto, e talvez por bom tempo, uma cortina caiu sobre o grande afeto que me unia ao País. Perdi o pé no estribo. Inerte no chão, o que consigo ver é o espectro de um imenso cavalo que relincha alto e ameaça me espezinhar.