Recife e suas águas – by Thales Paiva

 

No último dia 8, foi o dia do Nordestino. Avesso que sou a essas datas, especialmente se resultam em feriado, recebi com certo enfado os votos que me chegaram pelas vias múltiplas desses tempos. Fiquei calado, é evidente, mesmo porque não saberia o que dizer. Nunca gostei sequer de meu aniversário. Não iria gostar dos muitos penduricalhos que o comércio e o ócio bem pago dos parlamentares foram criando com o passar do tempo. Não obstante minha resistência, aproveitei uma saída à livraria para pensar no que faz com que me sinta nordestino, e que tipo de nordestino eu sou. Tão entretido fiquei com essa charada que custei a atentar para o ar desolado do livreiro do quarteirão que desmontava duas pilhas dedicadas a Ismail Kadaré e a Joyce Carol Oates, que ele deva como boas apostas para levar o Nobel de Literatura. Juntos, vimos no telefone dois poemas de Louise Glück, a ganhadora. Confortei-o. “É preciso ter sorte na vida. E isso ela tem até no nome. Você sabia que Glück em alemão é sorte? Glücklich pode ser feio, mas é sortudo.” Então traduzi para ele em voz alta o Love Poem, e o Telescope. Ele quase riu. “Minha filha faria melhor, monsieur.” Como discordar? “Você sabe, esses escandinavos bebem uma enormidade. Se saíssem um dia os bastidores publicáveis do Prêmio, pode escrever que eles estavam bêbados de cair quando a escolheram. Isso aqui parece letra de balada de Mireille Mathieu.” Então, entrei no Jardim do Luxemburgo. Contrariamente à luz que reinava na véspera naquele mesmo ponto, a partir do boulevard Saint-Michel, o entardecer do Dia do Nordestino estava longe de ser impressionante. Estudantes fumavam encostados nas grades e parece que ninguém vive mais ao ritmo apressado dos tempos pré-pandemia. O mundo passou por um slow down, agora perceptível no caminhar das pessoas. Nos próximos dias, queria conseguir uma carte de séjour. Morar aqui mais tempo não fará de mim menos pernambucano. Cícero Dias foi fiel ao Recife mesmo tendo vivido na França uma vida. Por que o mesmo não podia acontecer comigo? Quando Picasso lhe deu um quadro de presente e disse que era para o apartamento dele, Cícero agradeceu mas alegou que temia que o roubassem, que suas instalações eram muito modestas e a vizinhança perigosa. Cojones, hombre, no es para tus paredes. Es para que lo vendas y que compres con la plata la vivienda de tus sueños. Mas vamos por partes. Se visse a Terra de longe, e toda a beleza do planeta azul, é óbvio que me identificaria com cada um de seus habitantes. É assim que se sentem os astronautas quando nos enxergam de lá. Noruegueses, paraguaios, nepaleses, ruandeses, enfim, de fora eles têm a sensação inequívoca de que somos todos parte de uma grande família, pouco importando como nos vistamos, como falemos e quais sejam nossas crenças. Logo em qualquer ponto da Terra, eu estaria em casa. E se tivesse que apontar meu continente de afinidade, se tivesse o ensejo de percorrê-los à vol d’oiseau, todos eles e sua gente? Com qual me identificaria? Ora, nessa hora um recado genético que no espaço sideral tinha sido irrelevante, me diria que eu pertencia culturalmente, e lá vem a palavrinha mágica, ao Ocidente. Mas onde no vasto Ocidente? A algum ponto entre Lisboa e os Urais, ou, exagerando, a um triângulo estendido cujas coordenadas seriam Anchorage, Haia e Ushuaia. Isso me parece bastante óbvio embora conheça ingleses que nasceram em Xangai, apesar de terem vivido em Gloucestershire e lá morrido. Descartado o belonging oriental – asiático, e grande parte africano -, e condenado a ser latino, na vertente americana dessa civilização que varre da Dácia aos Açores, eis que meu continente estava definido: eu sou da América do Sul, como diz o estribilho de Milton. Ancorado no Brasil, não me veria nascendo à beira dos igarapés, em colônias italianas ou germânicas do Sul, muito menos ucranianas, polonesas ou lituanas de São Paulo. Podia sim ter vindo ao mundo em qualquer lugar entre Governador Valadares, Anápolis e Sobral, mas quis o destino que nascesse no miolo do Nordeste brasileiro, no atilado estado de Pernambuco, estuário natural de nativos tardios da Península Ibérica, a ponta da ponta da imensa massa continental eurasiana. Mais do que brasileiro, que se torna uma noção sem nação cada dia mais vaga, eu sou é nordestino. Nasci pois numa das mais belas cidades do Nordeste, e vivo na maior cidade nordestina do mundo, prudentemente situada um pouco fora da região embora a distância seja modesta para quem viu o planeta do espaço. É como nordestino que me sinto, falo e penso. E, como insinuado, mais do que nordestino, sou pernambucano. E mais do que garanhunhense, acho mesmo que sou atlântico. Tive minha identidade forjada no Recife. E se tivesse que destacar onde na cidade, chegaria sim ao local onde ela nasceu. Mas ora, se fechássemos mais a câmara, estaríamos no porto. Foi o farol da boca da barra que guiou minha saída, é sua luzinha vermelha que me acena de longe quando passo ao largo, e é por ele que me guiarei na ancoragem final da longa cabotagem. Foi em torno desse farol que comecei, é lá que vou terminar. Ironicamente, só não consegui viver perto dele. Tudo isso apesar de ser ele a primeira coisa que eu via quando despertava na rua da Aurora, e a última que saudava antes de dormir, invejando seu morador eventual, que minha mãe dizia existir, que via os cargueiros passar a metros dos arrecifes, pelas mãos dos chamados práticos da barra. Mas exploremos só um pouco mais essa charada de outono. Sendo tudo isso, quando me sinto mais brasileiro? Quando vejo que seria como pessoa um engodo maior do que sou se fosse argentino, hondurenho ou paraguaio. E quando sou mais nordestino? Quando ouço os demais brasileiros falar, e não me identifico com os temperos, ou com a falta deles, com a linguagem e a prosódia de seu português. Sou mais pernambucano do que nunca quando apedrejam nosso estado e querem acoimar-nos do que deveras possamos ser, mas que achamos só ser permitido a outros pernambucanos dizerem: que somos sim soberbos e etnocêntricos. Ao Recife, sinto que pertenço quando pego o ônibus na avenida Guararapes para ir para Casa Forte, e mesmo que não passe pela catraca por conta da circunferência da cintura, converso com um popular de pé no corredor, a mão segurando o estribo, e ele me conta que também tem um tio gordo, sendo que amputado e diabético, talvez quase cego, que passa jogo do bicho numa marquise da Encruzilhada. Pertenço à cidade quando saio do Marco Zero, caminho até o canal, e me arrependo de pegar um táxi na Agamenon Magalhães, onde o trânsito não anda. Chego ao Jardim do Luxemburgo, abro o jornal, mas não me concentro. E brinco com o lado cabalístico da vida. Nunca fui tão feliz e tão recifense quanto no mês 7 do ano de 1977, na rua 7 de setembro, entre as gôndolas da livraria Livro 7. E ainda dizem que o 7 é a conta do mentiroso. Talvez até seja.