Tornou-se famosa a polarizada distinção que Isaiah Berlin criou num ensaio sobre Tolstói: a de autores como raposas ou ouriços. O filósofo e historiador das ideias tomava como inspiração os versos do poeta grego Arquíloco, para quem as raposas sabiam muitas coisas; e os ouriços, apenas uma única coisa importante. Apesar disso, Berlin faz a polaridade ser maleável, pois há ouriços que guardam certas características de raposa e vice-versa.
Pois bem, o historiador britânico Peter Burke, já tão conhecido dos brasileiros, vem justamente de escrever sobre as raposas do conhecimento. Refiro-me ao livro recém-lançado “O polímata: uma história cultural de Leonardo da Vinci a Susan Sontag”, que, como o próprio subtítulo já indica, abrange o período que vem do Renascimento aos nossos dias. Burke espera contribuir para mitigar uma ingratidão histórica com esses autores, fazendo-nos ver que, com um único rótulo intelectual, costumamos esquecer suas outras valiosas contribuições para a cultura e a ciência.
Polímatas são raposas do conhecimento, interessam-se e debruçam-se sobre vários assuntos e disciplinas. Alguns chegam a ser enciclopédicos. A lista dessa “biografia coletiva”, como a chama Burke, reúne quinhentos personagens. Mas o autor vai além do biográfico e também discute como será a “sobrevivência dos polímatas em uma cultura de crescente especialização”. Ao contrário do que se pode imaginar, os polímatas não se limitaram a surgir apenas em séculos passados, quando a especialização ainda não raiara no horizonte. Para Burke, eles demonstram uma “surpreendente resiliência”. Há poucos anos, por exemplo, perdemos um grande polímata: Umberto Eco, que foi romancista, semiótico e filósofo. A própria Susan Sontag, que se debruçou sobre fotografia, crítica e filosofia. O igualmente muito traduzido no Brasil Oliver Sacks, que se dedicou a neurologia, psiquiatria, botânica, biologia e história da ciência. O não menos conhecido dos brasileiros Tzvetan Todorov, que escreveu sobre história, filosofia, sociologia, política e crítica literária, área esta em que é mais conhecido no Brasil.
Dentre os brasileiros, Burke cita o nosso Gilberto Freyre (1900–1987), tantas vezes reconhecido plural por seus contemporâneos, e o padre José Mariano da Conceição Veloso (1742–1811), cujos interesses intelectuais se voltavam para a química, a botânica, a matemática, a linguística e a economia política. Mas sentimos falta de José Bonifácio de Andrade e Silva (1763–1838) que, longe de apenas ser o conhecido “patriarca da Independência” dos livros de história, foi igualmente um naturalista notável e internacionalmente reconhecido.
Dentre tantas outras informações que colige e que entrelaçam temas correlatos, Burke nos mostra como muitas dessas raposas do conhecimento, ainda nos tempos presentes, reagiram à crescente onda de especialização. Registra ele: “José Ortega y Gasset denunciou o ‘ignorante instruído’ e alegou que a especialização leva à barbárie; Lewis Mumford se orgulhava de se apresentar como ‘generalista’; George Steiner disse que a especialização era ‘coisa de idiota; e Robert Heinlein, engenheiro mais conhecido como escritor de ficção científica, afirmou que a ‘especialização’ é coisa para insetos’”. Pelo que pessoalmente testemunhamos de Gilberto Freyre, ele, como Lewis Mumford, também gostava de se dizer generalista, daí ter insistido em se autoquestionar ou se explicar, ou se defender (“por que sou e não sou sociólogo”) e de apreciar o termo “escritor”, de caráter bem mais amplo, para se referir a si mesmo. Provavelmente, Freyre assinaria embaixo do que Ortega Y Gasset, segundo Burke, observou sentenciosamente: que a “cultura é necessariamente geral (‘no puede ser sino general’)”.
Para melhor compreender essas raposas do conhecimento, o autor lhes faz uma verdadeira análise psicológica em busca de algumas constantes em suas personalidades. Com base em biografias, autorretratos e testemunhos de conviventes, Burke aborda alguns pontos, que muito sumariamente aqui registro. Um desses pontos determinantes: a curiosidade abrangente e insaciável. Outro: concentração e alheamento da realidade, como espelham os casos de Kant, Adam Smith, Newton e Montesquieu. Ainda outro: possuir uma memória extraordinária. Mais um: “imaginação vívida”. E este, decisivo: energia e entusiasmo. O autor também lista “longas horas de trabalho” e até “o elemento lúdico”, pois, diz ele, “Certamente seria um erro ver as realizações dos polímatas como puramente apolíneas, só trabalho e nenhuma diversão. Há também um aspecto dionisíaco em seus feitos, o prazer experimentado tanto na aquisição de conhecimento quanto na solução de problemas”, sem falar no gosto que muitos deles têm e tiveram por jogos e brincadeiras.
Muito ainda teria a comentar, mas aí ficam alguns aperitivos para a leitura desse original ensaio, cuja erudição vem acompanhada da habitual clareza e do prazeroso didatismo do seu autor, professor emérito de História Cultural na Universidade de Cambridge e antigo professor visitante da Universidade de São Paulo.
Contribuo com duas referências: Antônio Houaiss, respeitado como enciclopedista, e também um “dionisíaco”, ao ponto de escrever um livro sobre cervejas, e o economista Paul Baran, que rotulou os “especialistas” como “imbecis com QI elevado”, ou “bárbaros da ciência”.
Bem-vindas contribuições!
Grato abraço