As eleições municipais já se tornaram História. No entanto, encerraram-se dia 20 do mês passado, com a vitória do candidato do Cidadania em Macapá. Eleições fora do calendário, por causa do apagão de energia que atingiu a cidade durante quase um mês. A vitória do Dr. Furlan, que chegou em segundo lugar e teve 55,7% dos votos, foi uma surpresa. Todos as instâncias governamentais estavam a favor do irmão do presidente do Senado, desde a municipal, cujo prefeito é um dissidente da Rede, até a Federal, com apoio explícito de Bolsonaro, passando pela estadual, do PDT, cujo mandante já visitou a cadeia. Venceu a todos, para surpresa de muitos.

Essa foi mais uma derrota do presidente Bolsonaro. Aliás, um dos grandes derrotados dessas eleições. Derrotado em todas capitais e grandes cidades, com exceção de Vitória do Espirito Santo. Lá, registrou-se um dos poucos confrontos diretos, e o mais importante, entre o PT e o candidato bolsonarista. Em todos o PT perdeu, outro grande derrotado. O partido de Lula não venceu em nenhuma capital, e nas 95 cidades com mais de 200 mil eleitores, venceu apenas em quatro. Foi uma derrota não apenas do partido, mas principalmente de seu principal estrategista. Lula definiu que o partido deveria ter candidatos em todas as grandes cidades, não importando a posição de outros partidos de esquerda, o que o levou ao confronto com o PSB em Recife. Os partidos considerados de esquerda acompanharam esta derrota, mesmo que o PDT tenha vencido em Fortaleza e Aracaju, o PSB em Recife e Maceió e o PSOL em Belém. Acompanharam os derrotados o PCdoB e a Rede, que não obtiveram qualquer vitória expressiva.

A democracia foi a grande vitoriosa. Nem as Fake News, nem as tentativas dos hackers de invadir a rede do TSE – bolsonaristas que pretendem demonstrar que as urnas eletrônicas falseiam os resultados eleitorais – obtiveram sucesso. De pouco valeu o apoio de Bolsonaro, pois 90% dos candidatos que tiveram seu apoio perderam, a começar por aqueles do Rio de Janeiro e São Paulo. Foram vitoriosos, com a democracia, os partidos mais tradicionais e conservadores como PSD, DEM, PP e o PL. O MDB e o PSDB, partidos mais de centro, conservaram presenças significativas no poder municipal, com o primeiro conservando o papel de maior partido detentor de prefeituras. Aliás, metade das capitais ficaram nas mãos de três tradicionais partidos de centro e de direita, porém democráticos: MDB (5), DEM (4) e PSDB (4).

Com esses resultados fez-se a ilação, errônea, de que Bolsonaro não tinha mais vez em 2022. Era carta fora do baralho. Aliás, o desejo de que ele saia logo do governo, entre articulistas, jornalistas e cientistas políticos, é notório. Esse desejo tem conduzido a análises equivocadas. No início de 2020, dizia-se que seu governo estava acabado, com suas posições esdrúxulas – para alguns, criminosa – em relação à pandemia, com a queda da economia, o crescimento do desemprego e os ataques de seus adeptos contra as instituições democráticas, leia-se, poderes legislativo, judiciário e mídia.  Agora, outra vez, prevê-se que em 2021 seu governo se desfará com a suspensão do benefício emergencial, o aumento do desemprego e da violência, e o prosseguimento das denúncias. Mesma previsão que havia em inícios do ano passado.

As pesquisas de opinião realizadas por diversas instituições, ao longo do ano, mostram o contrário. Segundo o Poder Data, por exemplo, 47% dos brasileiros aprovam seu governo (pesquisa entre 23 e 25/12). Seu desempenho, se somarmos as avaliações de ótimo/bom às regulares, alcança 59%. Tomando em consideração que se está ao final do segundo ano de governo, com quase 15% de desempregados e economia em recessão, é um feito. Sobretudo considerando-se que o governo tem desprezado o enfrentamento da pandemia; tem-se omitido nos cuidados com o Meio Ambiente, e particularmente com a Amazônia, recebendo por isso críticas de grandes empresários nacionais, incluindo o agronegócio, e governos estrangeiros; tem uma politica externa desastrosa, sendo objeto de “gozação”, desprezo e escárnio de governos, mídia e órgãos multinacionais; o presidente tem filhos acusados de prevaricação e ele próprio é  objeto de investigação, por tentativa de uso de entidades públicas em favor de interesses pessoais e familiares. Sem contar que grandes bandeiras de sua campanha eleitoral foram literalmente jogadas no lixo, como a defesa da “nova política” e o combate à corrupção.

Em situação de normalidade, segundo os cânones da análise política tradicional, este deveria ser um governo falido, com um presidente desnutrido, sem qualquer apoio na opinião pública. Pronto para sofrer umimpeachment. Por menos, aparentemente, Dilma foi derrubada. Porém não. Bolsonaro tem apoio na opinião pública, no meio empresarial e agora amplia sua base no Congresso. Ademais, criou uma rede de informação poderosa, articulando redes sociais e veículos tradicionais de comunicação. E introduziu uma novidade: apoio dos militares, absorvendo em seu governo centenas de membros das três forças armadas. A manter-se esta situação, ele tem zero chance de impeachment. E muita de ser reeleito. Para que isso não aconteça, é preciso que as acusações de corrupção de seus filhos e dele próprio progridam, com provas contundentes; que a situação da economia se mantenha crítica, com pouco crescimento e altas taxas de desemprego; que o apoio do Centrão definhe; que os militares se afastem e exprimam sua insatisfação junto a opinião pública; que os governos estrangeiros, particularmente os Estados Unidos, adotem, e mantenham, posições firmes de crítica, e iniciem boicote às exportações brasileiras. Ou seja, um quadro de variáveis muito difíceis de ocorrer, sobretudo em seu conjunto.

Eleições democráticas, porém, são um jogo que não tem seus resultados pré-definidos. O jogo eleitoral depende dos movimentos dos candidatos, que podem inverter expectativas. Particularmente em eleições majoritárias. O País está repleto de exemplos de candidatos que pareciam ter tudo para ganhar e perderam. Ulisses Guimarães e Brizola poderiam, se vivos estivessem, falar de cátedra a este respeito. Ou o inverso, candidatos que iniciaram as eleições com 2% terminaram por ganhar. Collor de Mello foi um deles.

Candidato opositor vencer eleições presidenciais ainda não se viu neste País. Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma foram todos, reeleitos. Não significa que a regra não possa ser quebrada. Aliás, a tradição existe para ser rompida. Para isso, porém, é preciso ter candidato robusto, carismático, com apoio de forças politicas de envergadura e recursos razoáveis, e, sobretudo, com uma boa estratégia. E para implementá-la e ter sucesso, é preciso não apenas “vender” seu candidato, mas saber desmontar o adversário. E para desmontar o “mito” é preciso entendê-lo.

O êxito de Bolsonaro, até agora, é um desafio, e não dos pequenos, para os analistas políticos, acadêmicos ou não. Por que ele mantém tanto apoio popular apesar de tantos aparentes erros? As respostas até agora são simplórias e pouco convincentes.

Dilma caiu pelo estelionato eleitoral. Perdeu apoio na opinião pública, na mídia, no meio empresarial e, finalmente, no Congresso. Bolsonaro está em pleno processo de um estelionato eleitoral, e o mesmo não ocorre. Duas de suas maiores bandeiras de campanha estão sendo jogadas, literalmente, na lata de lixo. Desmontou o aparato de combate à corrupção, jogando fora o ícone desta luta, e aliou-se com os políticos mais tradicionais, que dizia repudiar, renunciando à nova política. Ademais, as bandeiras de recuperação dos tradicionais e velhos costumes e valores não avançam, e o liberalismo econômico se desmantelou com a pandemia.

Por que um presidente que é chamado de irresponsável, incompetente, psicopata, errático, acéfalo, imbecil, negacionista, insano, entre outros termos pejorativos, pelos grandes meios de comunicação, incluindo editoriais, intelectuais e artistas, mantém um alto grau de aprovação? Sem entender esta questão é impossível derrotá-lo. Salvo se ele mesmo o fizer, com a adoção de medidas suicidas, pelas quais aparentemente é atraído.

Este é um dos bons enigmas de 2021. E um bom desafio a ser enfrentado, pois sua superação – ou decifração – pode significar uma mudança radical nos rumos deste país.