Em sua obra “Em busca do tempo perdido”, Proust nos expõe com maestria um conflito que ainda hoje perpassa a sociedade, inclusive a sociedade de países altamente desenvolvidos. Um confronto surdo, real, mas nem sempre observado em sua dimensão política. É desse conflito e seu aspecto político que também se ocupa a filósofa Martha Nussbaum em seu livro “Sem fins lucrativos: por que a democracia precisa das humanidades”.
Em Proust, o conflito entre as humanidades e as profissões liberais — advocacia, medicina, engenharia, etc. — está na própria raiz da vida do personagem principal, o “herói” como se costuma dizer. Ao desejar se tornar um escritor, ainda nos tempos de sua puberdade, o herói esbarra no desgosto do pai, que chega a se recusar a chamar de “profissão” a escolha de seu filho: as Letras. Nesse sentido, o personagem comenta com presumível melancolia: “Meu pai dedicava a meu gênero de inteligência um desprezo suficientemente corrigido pela ternura, de modo que tinha uma cega indulgência por tudo quanto eu fazia”. Esse “desprezo” pequeno-burguês por profissões que não sejam técnicas ou liberais revela o pragmático gosto por carreiras em tese mais “úteis” e “promissoras”, voltadas a “fins lucrativos” e mais confiáveis tanto por parte do Estado quanto por parte das famílias. Quanto a isso, Proust vai nos provar, com toda a ironia de que foi capaz, que no seu caso a literatura significou sua vida, e vida ampliada. Sua delicada vingança foi nos deixar, com a marca do gênio, uma obra monumental, hoje traduzida em todo o mundo.
Por sua vez, Martha Nussbaum, professora emérita de Direito e Ética na Universidade de Chicago, nos alerta com uma argumentação cerrada que há uma silenciosa crise: a da eliminação progressiva das humanidades no ensino de quase todos os países do mundo, pois “Obcecados pelo Produto Nacional Bruto, os países e seus sistemas de educação estão descartando, de forma imprudente, competências indispensáveis para manter viva a democracia”. Eis aí o ponto nervoso e essencial do belo livro de Nussbaum. É como se perguntasse se ainda teremos democracia por muito tempo, se, na formação das pessoas, há um desprezo ou uma indiferença por competências que são vitais à própria democracia. Afinal de contas, o espírito das humanidades se caracteriza, em suas palavras, “pela busca do raciocínio crítico, das ideias ousadas, da compreensão empática das diferentes experiências humanas e da compreensão da complexidade do mundo em que vivemos”. Dessa forma, sem o adequado cultivo das humanidades e das artes, o próprio interesse econômico, sempre colocado à frente ou acima, também corre perigo, sobretudo numa época em que as empresas demandam por inovação e criatividade.
A filósofa, ao aprofundar sua análise, nos aponta que “Os educadores que defendem o crescimento econômico não se limitam a ignorar as artes: eles têm medo delas. Pois uma percepção refinada e desenvolvida é um inimigo especialmente perigoso da estupidez, e a estupidez moral é necessária para executar programas de desenvolvimento econômico que ignoram a desigualdade […] Como disse Tagore, o nacionalismo agressivo precisa anestesiar a consciência moral”. E continua a pensadora americana: “A arte é uma grande inimiga dessa estupidez, e os artistas (a não ser que estejam completamente intimidados e corrompidos) não são servos confiáveis de nenhuma ideologia […]”.
Inspirada em Rabindranath Tagore, poeta nobelizado em 1913 e grande educador indiano, Nussbaum lembra-nos que esse escritor acreditava que a Primeira Guerra Mundial tinha, em grande parte, suas raízes numa educação que inculcara nos jovens a dominação em detrimento da reciprocidade e do entendimento mútuo. Hoje não é muito diferente, uma vez que, de par com a passividade nas escolas, cultivam-se nacionalismos e novos sentimentos da mesma dominação.
Em suma, sem consciência da complexidade do mundo presente, o pragmatismo exacerbado, o empirismo cego, a ausência de empatia e de espírito crítico levam água ao moinho do autoritarismo, do nacionalismo e da tirania; enfim, ao moinho, já em funcionamento, da morte da democracia. As humanidades e as artes, dizemos nós, não devem ser mendigas de orçamentos burocraticamente técnicos, mas altivas em sua presença que, por assim dizer, humaniza o próprio ser humano. Atrofiadas, atrofiarão a polifonia da arena democrática.
No Brasil, infelizmente, há décadas se escreve a crônica vulgar de sucessivos cortes orçamentários nas escolas e universidades, além do frio corte que é a sumária eliminação da disciplina, a exemplo da sociologia, da filosofia, da literatura, do latim, da música. Numa sociedade autoritária como a nossa há que se ampliar a diversidade e a imaginação. Se os Estados nacionais temem e subestimam as humanidades e a cultura, não haverá sequer a indulgência velada do pai da personagem proustiana, mas apenas a asfixia dos valores democráticos. É o que já se vê, de acordo com Nussbaum, em muitas partes do mundo.
Como geógrafo sinto-me contemplado.
Extamente isso. Se voltarmos ao berço da democracia, veremos que foi lá tb que se desenvolveram ao máximo potencial as Humanidades. Triste assistirmos ao fim da valorização da ciência que liberta… Ótima reflexão, Paulo. Parabéns!
Prezado Paulo
Como coordenador de um grupo na área de geotecnologias, faço uma reunião mensal com a equipe (eu, dois técnicos geógrafos, e três estagiários de Geografia e Educação Ambiental).
A segunda parte da reunião é uma formação de desenvolvimento profissional e pessoal. O tema foi seu texto. Todos se sentiram contemplados e fizemos boa reflexão.
Me coube mostrar para eles a responsabilidade de inserir a humanidade da Geografia em uma área tecnológica como a nossa.
A Formação foi muito proveitosa. Todos elogiaram o texto. Parabéns.