No Brasil de hoje, há, por assim dizer, duas grandes narrativas que polarizam belicosamente. Uma vem em linha direta do Iluminismo, do Positivismo, do amor à ciência e ao saber. Para bem defendê-la, recorreu-se ao adjetivo “civilizatório”. Outra, que antagoniza a primeira, é um amálgama difuso que reúne fanáticos, negacionistas, fundamentalistas evangélicos, além de irracionalistas e ressentidos em geral.
Bertrand Russell, o grande filósofo, escritor e matemático britânico, figura emblemática da narrativa racional, durante a Primeira Guerra Mundial, ficou estarrecido diante do frisson beligerante de seus colegas e compatriotas, tendo anotado no segundo volume de sua “Autobiografia”:
“Fui obrigado a revisar meus conceitos sobre a natureza humana. Eu era, por essa época, completamente ignorante a respeito da psicanálise, mas cheguei por mim mesmo a uma conclusão sobre as paixões humanas, que não se afasta muito dos princípios dos psicanalistas. […]. Tinha como certo, até então, que o normal é os pais amarem os filhos, mas a guerra persuadiu-me de que isso constitui exceção. Tinha igualmente como certo que a maioria das pessoas gosta mais do dinheiro do que de qualquer outra coisa, mas descobri que nada suplanta nelas o gosto pela destruição. Tinha também como certo que os intelectuais devessem amar a verdade, mas concluí que não chegam a dez por cento aqueles que preferem a verdade à popularidade”.
Freud, como se sabe, posteriormente glosaria esse tema da “destruição” criando o conceito de “pulsão de morte” e publicaria, em 1930, o seu hoje famoso ensaio “O mal-estar na civilização”. Agora, com a pandemia do novo coronavírus, voltamos à tensão de uma guerra e, mais uma vez, vemos aflorar a irracionalidade sob a epiderme da civilização.
A situação propiciada pela pandemia exige dos que amam a ciência e a cultura uma paciência infinita. Os negacionistas, por fé ingênua, simples má-fé ou ambas as coisas, entregam-se ao irracionalismo mais completo e, ao que parece, quase sempre cheios de um prazer sádico por saberem tão frágil o verniz da civilização. Se religiosos, exultam ao contrapor Deus e a fé ao mundo real, como bem ilustrado pelo paulino versículo da Bíblia que declara que “[…] o que é sabedoria para os homens é loucura aos olhos de Deus” 1 Coríntios 3 18-22.
Em dias recentes, vimos o ministro André Mendonça, da Advocacia Geral da União, invocar a Bíblia diante da suprema corte brasileira. Posou de vítima como se estivesse em perigo a liberdade constitucional de culto, o que nem de longe é o caso. Ao lado da fé, má-fé, fazendo de conta que não vê a excepcionalidade da condição pandêmica e o bem maior que é a vida… Como bom fundamentalista, sua excelência esquece o próprio Cristo, para quem se deve dar a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus…
Em 2019, vi, no Rio de Janeiro (no Recife nunca vi), carimbado, em várias paredes públicas, este slogan, que já então me assombrou e que parece ter fundamentado a fala ministerial: “Bíblia sim, Constituição não”. Palavras terríveis, sim, mas que terão também o seguinte e compreensível sentido por parte da população desamparada do País: “Se o Estado brasileiro é essa ausência quase total, por que não ficar de vez apenas com a Bíblia, que nos salva e nos promete uma redenção? Rasgue-se esse contrato social não cumprido e exalte-se, em face do temporal e do precário, a palavra eterna de Deus!”.
Dessa forma, chegamos a um perigo maior que começa a rondar o Brasil: o fanatismo religioso, o principal rebento da pura irracionalidade. Ele é o apego máximo às próprias ilusões, à recusa de desenganar-se e à fuga covarde do contraditório, além de altamente contagioso como aquela febre guerreira que Russell testemunhou durante a Primeira Guerra Mundial. Evidentemente, em momentos de profunda tensão, há um cansaço generalizado quanto às bases racionalistas da cultura, às perspectivas da lógica e da ciência, como se o irracionalismo, emerso do Hades do inconsciente, fosse a única salvação. Aí está o equívoco ponto: não é salvação! Cultivado, travestido de misticismo e fanatismo, o irracionalismo mata tanto ou mais quanto a própria frieza da lógica.
Em seu livro “Mais de uma luz: fanatismo, fé e convivência no século 21”, Amós Oz, o grande escritor israelense, escreveu com síntese e graça: “O fanático é um ponto de exclamação ambulante. É desejável que a luta contra o fanatismo não se expresse como outro ponto de exclamação a enfrentar o primeiro”, pois, lembra-nos o autor, “[…] o fanático é alguém que não deseja mudar, mas, em compensação, quer obsessivamente mudar o outro”.
Um dos pontos altos do livro de Oz é a lição de tolerância deixada por sua avó sobre a disputa entre cristãos e judeus. Reconhecia ela que a crença, por cristãos, e a descrença, por judeus, sobre a vinda do Messias trouxe ao mundo “ódio e raiva” e “assassinatos em massa” e, a seu modo, preconizava: “Por que não entramos num acordo, todos nós, judeus e cristãos, de simplesmente esperar com paciência para ver o que vai acontecer? Se o Messias chegar um dia e disser: ‘Há quanto tempo não nos vemos, estou tão contente de encontrá-los novamente’, os judeus terão de reconhecer seu erro. Mas, se o Messias disser quando chegar: ‘How do you do, é um prazer conhecê-los’, o mundo cristão terá de pedir desculpas aos judeus. Até lá, até a vinda do Messias, por que não vivemos e deixamos os outros viverem?”.
O que ocorre é o que Proust viu muito bem: “Há uma coisa ainda mais difícil do que seguir um regime; é não o impor aos outros”. Mas tenho certeza de que ele também concordaria com a avó de Amós Oz.
Mais uma vez, a erudição não empana a limpidez da mensagem, bem ao contrário.
Belas lições temos aprendido. Gracias.
Obrigado, caro editor Clemente Rosas.
É uma satisfação e uma honra poder contribuir com a Revista Será?
Como diz o povo: “Junta-te aos bons e serás um deles!”
Grande abraço