Naquele tempo, estando Jesus no Templo, os fariseus trouxeram-lhe uma mulher apanhada em crime de adultério para saber sua opinião. Pela lei de Moisés, ela deveria ser apedrejada. Mas o nazareno, o que achava? A resposta é arquiconhecida: “Quem de vós está sem pecado, seja o primeiro a lhe atirar uma pedra” (Jo, 8: 7). A parábola da “mulher pecadora” ocorreu-me um dia desses a propósito das derrubadas de estátuas de notórios pecadores envolvidos no tráfico de africanos jogados em infectos navios negreiros e para aqui trazidos como escravos entre os séculos XVI e XIX da chamada (olha só!) era cristã. Pouco depois do insight, porém, comecei a estranhá-lo. Afinal, afora o fato de estarem a mulher e as estátuas em situação de análoga impotência frente aos respectivos acusadores, nada mais aproximava as duas situações. Os fariseus queriam não derrubar a mulher no chão, mas apedrejá-la; e os manifestantes antiescravagistas não apedrejam as estátuas, derrubam-nas. Além do mais, os crimes de que aquela e estas são acusadas nada têm em comum. Ao contrário, pelo menos em relação a nossa sensibilidade moderna, um fosso abissal os separa. O adultério já não é crime entre nós faz tempo, e num mundo em que o ideal do casamento indissolúvel e perpétuo praticamente desapareceu (as pessoas não são mais casadas, estão momentaneamente casadas), a própria noção de adultério quase não faz mais sentido. Mas a escravidão, não. Ao contrário, é justamente frente a essa sensibilidade que a prática de acorrentar alguém para forçá-lo a trabalhar aparece como insuportável, um crime que clama aos céus. Nada a ver uma coisa com a outra, portanto.

Meu estranhamento subiu mais um degrau quando me dei conta de que para aquele povo, regido pela lei de Moisés, a escravidão nada tinha de condenável. Mesmo dentro da mundividência cristã, onde o amor a Deus é complementado pelo mandamento de “amar o próximo como a si mesmo”, esse amor não implica que “os homens nascem livres e iguais” – como diz a Declaração dos Direitos do Homem de 1789, que pode ser considerada uma espécie de batistério da sensibilidade moderna. Ao contrário, mais de um evangelista escreve sobre o “servo fiel” (cf. Mt, 24: 45, por exemplo), o que não é exatamente uma declaração de isonomia jurídica, e o apóstolo Paulo, para quem doravante não havia mais diferença entre o judeu e o grego, estende essa irmandade universal ao escravo que atendesse ao apelo vindo do Alto. “Foste chamado sendo escravo?”, pergunta ele numa de suas epístolas. Pois, nesse caso, que “permaneça diante de Deus no estado em que foi chamado”, porque “o escravo, que foi chamado no Senhor, é liberto do Senhor; da mesma maneira o que foi chamado, sendo livre, é escravo de Cristo” (1Co, 2: 21-24). Sumarizando, os apedrejadores de dois mil anos atrás não compreenderiam a derrubada de estátuas promovida pelos antiescravagistas modernos, enquanto esses achariam que é uma aberração matar a pedradas uma mulher que dormiu com outro homem que não seu companheiro.

Os dois eventos, tão díspares no tempo, no espaço, nas motivações e nos objetos, denotam duas sensibilidades diferentes, o que fornece matéria para uma reflexão sobre o tema do relativismo cultural, tão em moda. Mas também sobre o problema do anacronismo histórico – ou seja, a utilização de critérios de validade moral do presente para julgar acontecimentos do passado. Por certo os seguidores da lei de Moisés achavam que estavam agindo corretamente – ainda que o evangelista tenha inserido uma nota de dúvida ao informar que eles estavam apenas “tentando” Jesus (Jo, 8: 6). De igual forma, na hipótese de algum traficante de escravos porventura se questionar sobre a moralidade do seu negócio, a própria Santa Madre forneceria argumentos para uma racionalização que o apaziguaria: ao serem batizados quando aqui desembarcavam, os negros se tornavam “libertos do Senhor”, e assim alcançariam a salvação. Já para nós outros modernos, apedrejadores e escravagistas estavam inapelavelmente errados. Mesmo cientes da questão do relativismo cultural e dos problemas do anacronismo, acreditamos no princípio segundo o qual “os homens [e as mulheres!] nascem livres e iguais”, e não tergiversamos em considerar que o apedrejamento de adúlteras e a escravização de seres humanos são dois pecados que, como se diz, clamam aos céus. Numa palavra, digamos que nós vemos o que outros, em outras eras, não viam. Por ignorância? Por má-fé? Acho mais interessante, para ensaiar uma resposta, lançar mão da figura do aquário.

A imagem é do historiador francês Paul Veyne, e aparece num livro dedicado ao seu amigo Michel Foucault[1], um autor, como se sabe, avesso à idéia de progresso aplicada aos assuntos humanos e suas inumeráveis camadas epistêmico-arqueológicas soterradas pela história, cada uma delas estranha às outras e valendo por si mesma, o que, de pronto, interdita qualquer julgamento retrospectivo. Veyne, especialista em antiguidade greco-romana, retoma a questão das camadas arqueológicas exploradas pelo amigo, recolocando-a em termos imagéticos. À questão de por que uma determinada época não vê o que para outra é tão evidente, ele responde dizendo que cada época constitui uma espécie de aquário, dentro do qual os que nela nascem e nela são socializados se comportam como se fossem peixinhos dourados vivendo no interior de uma dessas estruturas. Estamos, desde que nascemos, presos num aquário sem disso nos darmos conta, sem sequer ver-lhes as paredes: “Tudo que acreditamos saber é limitado à nossa revelia, não conhecemos seus limites e ignoramos mesmo que eles existam”, diz Veyne. A essa imagem ele acrescenta a do automobilista dirigindo em condições de pouca visibilidade: “No automóvel, quando o homo viator dirige à noite, ele nada pode ver além do alcance dos faróis e, além do mais, frequentemente não distingue até onde vai esse alcance e nem vê que não vê”. Dito de outra forma, cada aquário é “o que poderíamos chamar um a priori histórico”, e como estamos sempre imersos na história, isso equivale a dizer que estamos, e estaremos sempre, imersos num deles.

É verdade que a história está sempre mudando, o que significa dizer que “este a priori, longe de ser uma instância imóvel que tiranizaria o pensamento humano, é mutante, e nós mesmos terminamos por mudá-lo”.[2] Mas, adverte Veyne, “nós não mudamos de aquário senão para nos vermos dentro de um novo aquário”. E como todos eles têm paredes, “não se pode, por graça especial, perceber a verdade verdadeira”. O farol do homo viator, ao mesmo tempo que permite ver, limita a visão àquilo que ilumina: “os contemporâneos [dos aquários passados] sempre ignoraram onde se situavam seus próprios limites, e nós mesmos não podemos perceber os nossos”.

Essa última reflexão vai além das críticas usuais ao anacronismo histórico. Usualmente, mesmo quando condenamos a facilidade dos julgamentos retrospectivos, adotamos o pressuposto – ainda que nem sempre formulado – de que estamos certos. Veyne de forma alguma diz que não estamos, mas nos lembra que essa certeza se dá nos quadros também de um aquário! – que poderá futuramente não ser o mesmo. E diz: “É preciso nos habituarmos à idéia de que nossas queridas convicções de hoje não serão as de amanhã”. Quais? Impossível saber, mas vaticina: “Nossos netinhos saberão depois que tivermos desaparecido, quando eles forem diferentes de nós”. Mesmo o aquário tão libertário e igualitário dos direitos humanos, a partir do qual condenamos práticas como o apedrejamento de adúlteras e a escravização de seres humanos, pode esconder – ou, se se preferir – não iluminar outros pecados, que só serão vistos a partir de um novo farol desbravando a neblina.  “Certos preconceitos, como a homofobia, estão se desfazendo: hoje reconhecemos a arbitrariedade dessa mentalidade” – diz Veyne, para em seguida se perguntar: “Mas não teríamos outros preconceitos? Quais?” A pergunta fica sem resposta. Tentarei uma, retomando justamente o aquário dos direitos humanos.

“Todos os homens [e mulheres!] nascem livres e iguais”, já diziam os revolucionários de 1789, e a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, de 1948, enfatiza que “ninguém será submetido à tortura ou a um tratamento ou punição cruel, desumano ou degradante” (art. 5º). É um farol potente e de grande alcance, sem dúvida, mas ele não ilumina, por exemplo, uma porção enorme de seres que partilham conosco o planeta e, como nós, são capazes de sentir dor e de sofrer: os animais. Entre eles, aqueles que abatemos para comer. Observo que, em relação a esses especialmente, já há um novo aquário em constituição, e muitos “netinhos” já estão há algum tempo entre nós. Um deles foi um nonagenário: Claude Lévi-Strauss. Ao longo dos anos 90 do século findo, o autor de Tristes Trópicos escreveu uma série de artigos jornalísticos que, reunidos em livro depois de sua morte, foram publicados sob um título provocador: Somos Todos Canibais. Num deles, escrevendo sobre a nossa relação com os animais, o antropólogo encara nossas práticas carnívoras com a “repulsa de um grande sensível”, enojado com “o horror das prateleiras de açougue onde admiramos pedaços de carne sanguinolenta”, como escreve uma sua biógrafa[3]. Do próprio Lévi-Strauss recolho o seguinte trecho: “Virá um dia em que a idéia de que, para se alimentar, os homens do passado criavam e massacravam seres vivos e expunham complacentemente sua carne em pedaços em vitrines, inspirará sem dúvida a mesma repulsa que as refeições canibais dos selvagens ameríndios, oceânicos ou africanos inspiravam aos viajantes do século XVI ou do XVII”.

E aqui estamos falando de carne morta, que, supõe-se, já não sofre. Cruel mesmo é o que muitas vezes se passa antes que esses tentadores pedaços de carne venham nos seduzir nas prateleiras dos açougues ou, como por milagre, apareçam embalados nas gôndolas dos supermercados. Existe abundante e facilmente disponível – via internet – informação sobre o sofrimento dessas carnes vivas nascidas e criadas para o abate, mas preferimos não saber. Não saber como o delicioso foie gras (literalmente, fígado gorduroso) é fabricado: patos e gansos, a partir do quarto mês de vida, são alimentados dia e noite à força, mediante a introdução de um funil goela abaixo por onde são despejados até dois quilos de milho por dia, até que o fígado adquira dez vezes o tamanho de um fígado normal; ou não saber como é fabricada a carne tenra dos vitelos: bezerros são separados da mãe ainda bebês e colocados em baias exíguas de modo que não possam se virar ou mesmo se mexer muito, de modo a não desenvolver uma musculatura que comprometa a maciez da carne, e são abatidos até os sete meses de idade. Essas criaturas vivem uma curta vida de tortura. E a afirmação não é retórica, é literal.

A prática de enfiar milho à força no estômago de patos e gansos reproduz uma forma de tortura empregada pela justiça francesa do ancien régime: a “questão da água”. “Questão” era o nome técnico da tortura de um modo geral, e a da “água” consistia em amarrar o “paciente” num tamborete e, com a ajuda de um chifre de boi furado, enfiar-lhe água goela abaixo. O volume de líquido variava: cerca de quatro litros para a “questão ordinária”, e de oito litros para a “extraordinária”.[4] Já as baias exíguas onde são colocados bezerros como que anunciam uma forma de tortura empregada pela CIA na “guerra ao terror” depois dos ataques terroristas de setembro de 2001: a “caixa de confinamento”, que consiste em trancar o preso por dias seguidos numa caixa semelhante a um ataúde, dentro da qual ele não pode se mover.[5] Para não falar nos frangos de granja! No mais recente romance do francês Michel Houllebecq[6], o protagonista é um especialista em cadeias alimentares que tem entre suas tarefas fiscalizar as condições em que são produzidas as iguarias que alegram nossos pratos. Uma descrição que ele faz de “uma granja enorme”, com “mais de trezentas mil galinhas”, é impactante: “Em hangares iluminados do alto por lâmpadas potentes de halogênio milhares de galinhas tentavam sobreviver, apertadas a ponto de se tocar […], depenadas, desencarnadas, a pele irritada e infestada de piolhos vermelhos, viviam no meio de cadáveres em decomposição de suas congêneres, passavam cada segundo de sua breve existência – no máximo um ano – a cacarejar de terror. […] era a primeira coisa que chocava, esse cacarejo incessante […] esse olhar de pânico e de incompreensão, elas não pediam nenhuma piedade, teriam sido incapazes disso, mas não compreendiam […] as condições nas quais tinham sido chamadas a viver. Sem falar dos pintinhos machos inúteis para a postura jogados ainda vivos, aos punhados, nas trituradoras”. Expressionismo do autor ou não, a verdade é que mais de uma vez, desde que li essa passagem, lembro dela quando vou trincar uma coxa de frango assado.

De volta a Jerusalém. A primeira interpretação que a leitura do evangelista sugere é a de que a interpelação de Jesus aos apedrejadores se refere ao pecado de adultério. Parece óbvio. Afinal, a malta enfurecida queria apedrejar uma adúltera. Mas, em algum momento dessas reflexões – onde misturo alegremente o que supostamente disse o suposto filho de Deus e o que escreve um historiador moderno para quem o monoteísmo é apenas mais um “aquário” –, em algum momento, como dizia, pus-me a flertar com a idéia de que o nazareno estava se referindo a algo bem mais abrangente. Ele não diz “quem de vós nunca adulterou”, mas “quem de vós está sem pecado… Não estaria ele falando de mais de um? Parti para a fantasia e imaginei um vegetariano dirigindo-se aos derrubadores de estátuas – cujos tataravôs, ou os bisavôs dos tataravôs provavelmente achassem a escravidão algo natural – e lhes interpelando: “Quem de vós nunca comeu um foie gras, um baby-beef  ou uma galinha ao molho pardo, que faça fila para derrubar a estátua de Cristóvão Colombo!”. Acho que seria tomado por um doido.

Eu não me candidataria para a fila. Não porque adoro foie gras, porque adoro baby-beef ou porque adoro galinha ao molho pardo – ainda que hoje em dia não consiga mais me deliciar com uma dessas iguarias do engenho culinário sem uma ponta de má-consciência –, mas porque sou contra a derrubada de estátuas; contra a “limpeza” da história, expurgando-a de seus horrores – empreendimento típico de regimes totalitários. Nessa toada, seria contra uma multidão de militantes dos direitos dos animais no centro do Recife, onde vivo, tentando derrubar uma estátua do poeta João Cabral de Melo Neto, por quem tenho grande admiração, porque ele era um aficcionado de touradas, tendo produzido panegíricos sobre matadores como Manolo Gonzáles. Acho que touradas não passam de um show de crueldade e covardia – porque são raros os casos em que o touro consegue matar o toureiro –, e sempre me espantou o fato de o autor de Morte e Vida Severina ter-se deliciado vendo-os. Mas, como não gosto de depredações, minha atitude de reprovação resume-se a não ler os poemas cabralinos celebrando espetáculos que poderiam figurar na História Universal da Infâmia de Jorge Luis Borges.

Concluindo. O nazareno não deixou obra escrita. Apenas falou. No evangelho de João, contudo, está dito que ele “escrevia com o dedo na terra” quando os fariseus chegaram com a mulher adúltera. Depois do episódio, “inclinando-se novamente”, voltou ao afazer (Jo, 8: 6-8). O que terá escrito? Só a poeira saberá. Pena.

 

[1] Paul Veyne. Michel Foucault: sa pensée, sa personne. Paris: Albin Michel, 2008.

[2] Como e por que isso acontece, não vem ao caso aqui discutir. Para essa discussão, remeto a Luciano Oliveira, O Aquário e o Samurai. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2017.

[3] Emmanuelle Loyer, Lévi-Strauss. Paris: Flammarion, 2015.

[4] Cf. Luciano Oliveira, Do Nunca Mais ao Eterno Retorno: uma reflexão sobre a tortura. São Paulo: Brasiliense, 2009 (2ª edição).

[5] Senado dos Estados Unidos, La CIA et la Torture. Paris: Éditions des Arènes, 2015.

[6] Michel Houllebecq, Sérotonine. Paris: Flammarion, 2019.