Recentemente os ex-presidentes Lula e Fernando Henrique Cardoso se encontraram e conversaram durante um almoço. (Pode ser intrigante, mas, ao falar de ambos, não desejo falar de política. Norberto Bobbio me adverte que “A ideia de que tudo seja política é simplesmente monstruosa”. O grande italiano sabia das coisas. Falarei de conversa.) Apesar da política, mas também por causa dela, os dois ex-presidentes sempre conversaram. Esquece-se com frequência que os programas partidários do PT e do PSDB, malgrado uma polarização de décadas, são muito próximos, da mesma família política.
A mídia repercutiu a conversa de uma forma assombrosa. Por um momento supus que fossem dois extraterrestres conversando sobre galáxias distantes. Enfim, a mídia e as redes sociais repetiram à farta esse encontro de titãs: o do “improvável” presidente Fernando Henrique e o do, a seu modo, também improvável presidente Lula (aludo aqui ao livro “O improvável presidente do Brasil”, do próprio Fernando Henrique em parceria com Brian Winter). Para ser conciso, houve uma página de mitologia política a ser interpretada. Mas não vou interpretar, porque prometi aos leitores que não vou falar de política.
Meu tema é a conversa. Conversar, num mundo de insultos e de intolerância, parece algo exótico, uma arte perdida. Mas conversar, nos diz o sábio historiador britânico Theodore Zeldin, em seu livro “Conversação”, “não é apenas reembaralhar as cartas: é criar novas cartas para o baralho”. Então, se a democracia não for — também — uma boa conversa, o que será? O bom Zeldin nos diz mais: “A conversa é uma centelha criada por dois espíritos, duas mentes”. Aí está o poder de fogo da conversa. Fogo pacífico, sobretudo se esses espíritos estiverem desarmados.
Jogar conversa fora pode não ser bom, pode ser um desperdício de tempo, mas uma boa conversa pode nos levar a muitos e novos caminhos. Bons políticos, políticos de verdade, gostam de conversar. Namorados gostam de conversar. Sem uma boa conversa, homens de negócios não fecham negócios; amigos não aproveitam da amizade. Fernando Henrique e Lula são semelhantes e, ao mesmo tempo, muito diferentes, o que torna a conversa por si só mais interessante. Há líderes que gritam, que monologam. Maus líderes, antilíderes. Líderes de verdade conversam. Zeldin, no mesmo livro, observa que atualmente “Quanto mais alto você sobe na hierarquia, mais tempo passa dialogando”. Não se é líder sem uma boa conversa. Pode-se não gostar de Lula e de Fernando Henrique, mas eles, para o bem e para o mal, são líderes políticos. Líderes conversam entre si.
Se eu disser, a quem não leu Zeldin, que ele cita o Brasil, chega a dar orgulho num tempo de tantas lástimas e humilhações para os brasileiros. Zeldin cita que nossas telenovelas de sucesso, como todos sabemos, têm “um roteiro que costuma ser reescrito às vésperas de entrar no ar, de maneira a conter referências aos fatos correntes, e assim o seriado se transforma em comentário sobre a vida cotidiana, uma parte da conversa de todos”. Essa é boa, enquanto intelectuais pátrios torcem o nariz para nossas telenovelas, vem um dos maiores historiadores do nosso tempo, como quem não quer nada, apontar-lhes um papel nada menor no nosso cenário social…
Por sua vez, em seu livro, “A arte da conversação”, outro grande historiador britânico, bem conhecido dos brasileiros, Peter Burke, tem um capítulo intitulado “A arte da conversação no início da Europa moderna”, em que observa, com erudição e humor, a conversação como uma arte, de que são testemunhos os diversos manuais sobre o assunto que apareceram entre os séculos XVII e XIX, muito embora o termo “conversação”, segundo sua análise histórico-social, tenha sido usado “com uma amplitude de significados maior do que a de hoje”. Mas o tema, ressalta Burke, é bem mais antigo e remonta ao romano Cícero, que, num tratado sobre deveres sociais, abordou o tema “conversa comum” (“sermo communis”).
Os autores daqueles manuais se preocupavam com uma espécie de sabedoria aplicada e uma cuidadosa etiqueta: nada de se falar sobre si o tempo todo, muito menos de se falar ao mesmo tempo que outra pessoa; nada de blasfêmias, nada de mordacidade, muito menos de palavras vulgares, etc.; por outro lado, circunlóquios e eufemismos eram bem-vindos, a fim de se evitar possíveis e explosivas desavenças. Conselhos práticos e sensatos que podemos resumir numa só palavra: educação. Enfim, é como disse o Padre Antônio Vieira, tão excelente escritor quanto conversador, “A boa educação é moeda de ouro. Em toda parte tem valor”. Também uma boa conversa vale ouro.
Bem simpática e calmante, a essa altura da partitura, no meio do fogo cruzado, essa sua defesa da conversação. Lembrei que em Cambridge, England, onde passei dois anos como Visiting Fellow, era considerado “mal educado” (ou “falta de cultura”, algo assim) ficar calado no “College Dinner”, mas acho que era considerado pior ainda tratar de assuntos pessoais. Isso foi nos anos setenta. Aliás, mais tarde, anos oitenta, um colega britânico na ONU, um que escrevia melhor que todos nós, uma vez comentou algo nem tão pessoal assim, era até uma brincadeira, mas antes de tocar no assunto fez a introdução “Sorry to get personal, but I suggest…”. Já soube de gente que não gostava desse “distanciamento”, mas eu sempre gostei. Ou seja, conversação, sim, confessionário, não.