“[…] como o primeiro sussurro de um vento que cresce. ‘O horror! O horror!’”

                                                                                                  Joseph Conrad

 

Um dos mais conhecidos artigos de Roland Barthes leva o seguinte e curioso título: “Por onde começar?”. No fundo, é a pergunta que todo autor responde assim que começa a escrever e, sobretudo, antes mesmo de iniciar um texto. Mas a pergunta, por si só, é instigante, especialmente quando o tema é asperamente esférico e angustiosamente doloroso, como é o caso da violência gratuita contra os indefesos. É como visitar o coração das trevas — para lembrar o famoso título de Conrad.

A indefensável truculência de um batalhão da Polícia Militar de Pernambuco nos protestos contra o Governo Federal deixou um rastro de indignação na sociedade. Não se trata de opinião política ou de coloração partidária. O caso é uma completa afronta à cidadania e, por extensão, à democracia. O horror se torna mais horror quando se sabe que obedeceu a um desenho previamente traçado. Ou seja, uma violência que, por assim dizer, foi e não foi gratuita. Até uma criança sabe que forças policiais e militares se pautam por ordens, por disciplina, por estratégias. Imaginar que esse tipo de violência é gratuito desconsidera a óbvia cadeia de comandos de uma operação.

É evidente que a agressão, o surto de barbárie, torna-se ainda mais significativo se considerarmos que ocorreu numa unidade da Federação que “por acaso”(!) é de oposição ao governo central. A surpresa do golpe, porque foi um golpe, contra a passeata, eis o núcleo do mal-estar maior. Logo ficou evidente que a ordem não partira do governador de Pernambuco. Enfim, a provocação foi clara. Resta se saber (se é que se saberá) se o desenho de tal golpe foi algo espontâneo e autóctone ou, pior, orquestrado remotamente. Noutras palavras, se pura simpatia fascistoide ou se submissão a uma orientação da mesma natureza vinda sabe Deus de onde.

“O horror! O horror!” são as palavras da personagem de Conrad ao final do seu romance acima evocado. É num horror semelhante que começamos a afundar. Rupturas institucionais aparentemente pequenas podem, sim, anunciar a ruptura total contra a ordem e a Constituição. Na água apenas morna ou ainda fria, o sapo da anedota mal sabe que, aos poucos, virá a fervura que o levará à morte.

Alguns dias depois, assisti na TV a uma cena do mesmo episódio tão hedionda quanto as que foram imediatamente divulgadas. Um dos feridos, amparado por uma advogada, com seu olho sangrando muito, sofre uma nova dor, dessa vez moral: a omissão de socorro de uma viatura do Batalhão de Rádio Patrulha. Os policiais param a viatura, mas ficam completamente indiferentes ao sofrimento da vítima. Não chamam por socorro nem muito menos se oferecem para levar a vítima na própria viatura a um serviço de emergência. Era como se assistissem a um filme de um país distante.

O Batalhão de Rádio Patrulha, criado em 1950, tem como um de seus slogans, pelo que se vê na internet, as seguintes palavras: “Nossa presença, sua segurança”, uma tranquilizadora promessa. Mas há outras pérolas que citarei aqui. São as que encontro no hino da corporação, cuja música é de Nelson Ferreira e cuja letra é do poeta Austro-Costa (meu tio por afinidade), ambos, como se sabe, já falecidos e que, tanto na música quanto na poesia, deixaram um importante e inesquecível legado. Hinos exaltam e glorificam, é sua missão simbólica, e o que os dois amigos, Austro e Nelson, criaram não é diferente. No hino, há um coro que se faz refrão: “Sentido! Alerta, patrulheiros! / Pelo dever de bem servir, / Juntemos sempre, companheiros, / A urbanidade ao pronto agir!”.

Vendo na TV as cenas de ostensiva omissão, pensei duramente em que estado teria ficado o poeta se soubesse como ironicamente seus versos foram desmentidos. Que polícia é essa que, estando presente, nenhuma segurança oferece, em especial quando se trata de fazer um gesto humanitário?

Por onde terminar? Infelizmente, o drama e o horror não terminam aqui nem naquele dia humilhante para Pernambuco. É preciso respostas e coragem ante a violência fascista que vem tomando o País. Só uma coisa me parece clara: o termos assistido, no coração do Recife, a um hino vivo a essa violência. A letra desse hino sombrio tem apenas uma palavra: covardia.

Paulo Gustavo