Leonardo Gill

Os atentados dos dias 7, 8 e 9 de janeiro de 2015 em Paris e região metropolitana evidenciam uma situação tensa que ocorre na França. Parte da equipe de redação do semanário satírico Charlie Hebdo foi metralhada por dois irmãos, Cherif e Saïd Kouachi, ambos franceses de pais argelinos, ação que eles alegaram, antes de morrer no dia 9, estar relacionada à Al Qaeda do Iêmen. Eles mataram 12 pessoas e feriram 9. Além disso, no dia 8, o francês de origem malinesa Amedy Coulibaly matou uma policial e tomou de assalto um mercado kosher, no dia 9, na região de Vincennes, matando mais 4 pessoas. Antes de morrer, ele vinculou a ação ao Estado Islâmico.

Agora que sabemos quem são os responsáveis pela ação, que eles foram mortos após uma formidável perseguição policial e que eles reivindicaram seu pertencimento a diferentes grupos terroristas – e que os meios de comunicação conseguiram encontrar algum vínculo entre eles –, podemos nos questionar as razões que levaram a esse atentado, que diz mais respeito a problemas internos na França e ao ambiente de instabilidade do que a questões de terrorismo internacional.

No dia 7 de janeiro, a revista britânica The Economist publicou um infográfico sobre a percepção do islã nos países europeus. Na França, os muçulmanos são 8% da população, o que representa 5,3 milhões dos 66 milhões de franceses (dados de 2013). A revista afirma também que a população francesa acredita que os muçulmanos sejam na verdade 31% da população, o que daria algo em torno de 20 milhões, quase um terço da população. A inflação é uma tendência que se repete em diversos países europeus. A Economist ainda publicou um infográfico em que mostra qual a porcentagem da população que pensa que o islã é incompatível com o Ocidente, o que ficou em mais de 50% da população francesa, e a mais de 60% na Espanha.

Uma razão para essa discrepância entre os números talvez resida na confusão entre árabes – que é uma cultura (língua, prática, modos, tradição) predominante em países do norte da África e no Oriente Médio – e muçulmanos – que são praticantes de uma religião que existe em diversos países da África, do Oriente Médio e da Ásia. Na França, há populações árabes cristãs, judias e sem religião definida, e de árabes que abandonaram parcial ou totalmente as práticas religiosas por estar em um país que lhes permitia isso. Do outro lado, os muçulmanos da França possuem diversas origens, sendo majoritariamente do norte da África, principalmente Argélia, Marrocos e Tunísia.

Alguns dados sobre a imigração na França (e na Europa) podem contribuir à análise. Segundo o Institut National de la Statistique et des Études Économiques – INSEE[1] de 2008, a população imigrante pondera a média de envelhecimento da população francesa. De fato, há proporcionalmente mais jovens entre 18 e 24 entre as populações imigrantes ou filhos de imigrantes do que as populações não imigrantes. O documento do INSEE ainda ressalta a dificuldade de acesso ao emprego entre essas populações, principalmente entre os mais jovens e os recém-formados. A precariedade das políticas de integração das sociedades imigrantes na França – e na Europa como um todo – contribui em boa parte à exclusão social das populações de imigrantes, geralmente associadas às margens das grandes cidades, “les banlieues”, e às habitações sociais das periferias.

As primeiras levas de migrações árabes chegaram na França na década de 1970, após as descolonizações, muitas delas conflituosas. Essa primeira geração encontrou um cenário mais favorável, com ampla oferta de trabalho e o amparo de um Estado de bem-estar social pós-Segunda Guerra. Além do mais, vale lembrar que essa primeira leva era composta por refugiados de guerras civis, da perseguição religiosa, da fome e da miséria. A França oferecia então a estabilidade política e tolerância que buscavam para uma nova vida, onde muitos se instalaram com suas famílias ou formaram novos núcleos.

Atualmente, falamos de segunda ou terceira geração de imigrantes e das dinâmicas de imigração que as primeiras levas criaram, algo do tipo “meu tio está bem, vou tentar também”. Globalmente, em 2011, dos 12 milhões de imigrantes na França (quase 20% dos habitantes na França), 43% são de origem africana, algo em torno de 5,1 milhões, a grande maioria de origem árabe (3,6 milhões somente de Argélia, Marrocos e Tunísia)[2].

Não obstante, o cenário de prosperidade anteriormente descrito deteriorou-se amplamente, com a degradação do estado social – principalmente da escola pública e dos serviços de assistência social – e o aumento do desemprego, relegando às classes mais pobres os empregos com remuneração inferior. O desemprego crescente na Europa é de 9,8 na França, mas está em 17,3% entre a população imigrante, castigando majoritariamente os mais jovens (da população em idade de trabalhar, o desemprego na França entre os 15-24 anos é de alarmantes 23,9% – dados do INSEE).

Com poucas possibilidades de ascensão social, muitos desses jovens imigrantes ou filhos de imigrantes de origem muçulmana são mais vulneráveis à pregação de fundamentalismos religiosos, notadamente em um mundo globalizado em que se tem fácil acesso a vídeos que chamam por uma guerra contra o Ocidente e seus valores.

Do outro lado, pode-se afirmar que a tendência ao extremismo não acomete os jovens não imigrantes, visto que o desemprego também é grande entre eles? Uma pergunta delicada e difícil de responder. É fácil imaginar que, não sendo imigrante, a sociedade consegue dar um melhor respaldo para esses jovens. No entanto, no ambiente de pessimismo e de crise econômica, a ascensão de partidos de extrema direita é uma evidência na Europa como um todo, com forte teor de xenofobia em seu discurso, e que consegue atrair jovens não imigrantes para reforçar sua base de apoio. Na França, a candidata da Frente Nacional, Marine Le Pen, já está entre as favoritas para a eleição presidencial de 2017.

Como afirma o cientista político Olivier Roy, não existe uma comunidade muçulmana no seio da sociedade francesa, organizada politicamente, que possa dar o apoio que muitos jovens de origem muçulmana procuram para lutar por uma melhor condição da população de imigrantes de mesma prática religiosa. A saída do extremismo, em que os líderes encontram-se em território estrangeiro, com mensagens amplamente difundidas na rede, torna-se uma alternativa.

Diferentemente do que foi alarmado sobre o atentado contra o Charlie Hebdo, não se trata do 11 de setembro francês. É um problema interno da França, que diz respeito à sociedade francesa, cada vez mais escondida detrás de um discurso de unidade nacional que no fundo não existe e apenas reforça a extrema direita xenófoba. Este é o momento para a República Francesa reconhecer-se como nação multicultural, em que as diferentes populações possam viver em tolerância e não importar conflitos para sua dinâmica interna. É o momento de a sociedade francesa admitir as banlieues, os subúrbios das grandes cidades, como parte integrante do meio urbano das capitais, que precisam de políticas públicas específicas para reduzir as desigualdades e criar oportunidades para os jovens, principalmente.

Em tempo, não parece ser essa a política que se adotou. A extrema direita, reforçada, já assumiu uma postura mais separadora que integradora, e os ataques pontuais a mesquitas multiplicaram-se por toda a Europa. Não obstante, as manifestações de apoio aos jornalistas da Charlie Hebdo foram permeadas por muçulmanos: “Pas en mon nom”, ou “Não em meu nome” eram os dizeres dos cartazes da grande maioria dessa população muçulmana.

 

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Foto de Jean-Manuel Simoes

http://www.photographie.com/event/jean-manuel-simoes-passages

[1] Instituto Nacional da Estatística e dos Estudos Econômicos

[2] France, Portrait Social – Édition 2014, INSEE.