Vampire (1895) by Edvard_Munch.

 

Compareceram a esta delegacia às 15:55 desta sexta-feira, 20 de agosto de 2021, de uma parte a Sra. Linda Krausz, 59, editora de ofício, residente nesta capital, em endereço que o delegado Fábio Porciúncula houve por bem manter sob sigilo; sendo que, de outra parte, o Sr. Daniel Goldfarb, 66, que se identificou como escritor, também residente em São Paulo capital, na rua Diogo Jacome, 501. A razão do comparecimento compulsório de ambos a este 15° Distrito Policial, sito à rua Dr. Renato Paes de Barros, 340, deveu-se, primariamente, às agressões por que teria passado a editora Krausz nas mãos do infrator Goldfarb, ao cabo de uma altercação por muitos testemunhada durante o horário de almoço do restaurante Due Cuochi, localizado neste distrito, na rua Manuel Guedes, 93. Houve por bem o delegado Porcíncula facultar, em primeiro lugar, a palavra à vítima que, dispensando a água e o café forte oferecidos pela escrivã Tarsila Franco, começou por dizer que chegou à casa de pasto antes do horário combinado entre ambos porque queria, segundo ela, embriagar-se de um certo Aperol Spritz para que, à chegada de Goldfarb, se sentisse livre da timidez e do embaraço que a presença do escritor lhe provocam para dizer-lhe umas tantas verdades que, ainda segundo Krausz, lhe estavam atravessadas na garganta há vários meses, a despeito da vitoriosa cooperação entre ambos no terreno editorial, fato que deveria ensejar, na visão do delegado Porciúncula, união e concórdia, e não divergência e agressões. Dando sequência a seu testemunho, a depoente disse que a Krausz & Goldfarb foi constituída por ideia de Goldfarb, em 2018, com o fito explícito de editar escritores brasileiros, e também o que chamou de boa literatura, o que quer que isso seja. Alegando vício e deformação profissional de que padece em corrigir e melhorar textos, quis a editora digitar de próprio punho e na primeira pessoa o ocorrido. O delegado, homem de natureza larga e equânime, houve por bem facultar o mesmo capricho e direito ao escritor Goldfarb, antes mesmo que ele invocasse razões análogas para si.

Linda

Fundar a Krausz & Goldfarb foi ideia do Daniel. No começo, resisti ao projeto porque, na minha concepção, talvez por traumas entreouvidos na família paterna, eu concebia uma editora como um depósito em algum lugar da Barra Funda onde, nos dias de transbordamento dos córregos e rios, eu seria acordada de madrugada para acionar o seguro. Ou pior, para empilhar livros invendáveis de autoajuda em pallets carcomidos por carunchos, só para depois liquidar por R$ 2,00 a peça os volumes encharcados. Daniel me convenceu do contrário. De que só mandaríamos imprimir livros que tivessem boa base de venda digital, o que nos protegeria de riscos financeiros e, é claro, daria um ar de contemporaneidade à empresa. Percebemos desde o nosso primeiro contato, na Feira do Livro de Paris, que ele é um escritor que tem olhos de editor e que eu sou uma editora com viés de escritora, o que poderia garantir nosso bom funcionamento em dupla. Sendo nossa intenção ampliar a base de autores o mais cedo possível, desde que não comprometêssemos a qualidade de revisão, de preparação de texto e do esmero da capa, sentimos que logo estaríamos expostos a um universo amplo de autores. Sem entrar no mérito de minha relação pessoal com Daniel, da qual ele não resistirá a falar, estabeleci desde o começo que não queria vê-lo fazendo galanteios para as pessoas de nosso universo de trabalho. Que se comportasse de forma estritamente profissional para manter a harmonia, os padrões éticos elevados de um ramo cheio de subjetividades e intrigas, e, sobretudo, a paz entre nós. Tudo ia bem até irmos para a Feira do Livro de Frankfurt de 2019, onde ele se insinuou além do prudente para uma escritora que tinha idade para ser nossa filha, uma baiana que vou chamar apenas de Geisa. Com a chegada da pandemia, sei que eles mantiveram intenso contato virtual – como todos nós no ramo -, e nada voltou a me parecer suspeito. Semana antes de mandarmos imprimir “Cabala no Abaeté”, descobri que os dois vinham se encontrando na intimidade em São Paulo, como amantes descarados – o que me levou a tomar algumas medidas, sempre com a preocupação de que elas não prejudicassem a editora. Conforme se verá, fiz tudo à minha maneira. Se ele não queria arcar com as consequências, que tivesse tido mais juízo – tanto quanto a isso podem se permitir os escritores.

Daniel

Isso não é um julgamento, mas faço questão de dizer de cara que o que as pessoas do restaurante interpretaram como violência estava em linha com o padrão de relacionamento que mantemos. Querer criminalizar um safanão que lhe dei no braço é absurdo e não diz respeito a ninguém. Mesmo porque tudo o que ela fez e da forma que fez, foi um convite para que eu a estapeasse se preciso fosse, para que ela despertasse de um transe e, sobretudo, daquele ódio em estado puro. Como se faz com uma pessoa que tenha desmaiado, ora essa. Indo aos fatos, Linda concluiu por sua conta e risco que eu estava tendo relações sexuais com Geisa, a baiana – como ela gosta de dizer. Foi por conta disso que ela fez uma viagem extemporânea ao Rio de Janeiro onde foi se encontrar com um de nossos melhores prospects, um conhecido cantor da MPB que, embora tenha entrado nos anos, é conhecido por ser um inveterado galanteador. Passei mensagem na noite da última terça-feira para saber se ela chegaria a tempo de termos a reunião do Conselho Editorial, mas ela disse que dormiria no Rio. Quando perguntei se havia mesmo necessidade disso, ela foi lacônica e evasiva. Para bem dizer, desligou o telefone, alegando que atravessava o túnel Rebouças. Preocupado com a segurança dela numa cidade que não é propriamente um mosteiro, liguei várias vezes e o telefone estava fora do ar. Na quarta-feira, vi numa rede social que ela estava num restaurante do Leme com o tal artista. Até aí podia perfeitamente ser um excesso de zelo profissional, dado que o passe dele é bem cobiçado pelos nossos concorrentes, mas não se explicava um rasgo de decote que desnudava a polpa dos seios e um sorriso que me pareceu francamente debochado, deliberadamente libidinoso. A mão indolente do cantor que pendia de um braço totalmente apoiado nos ombros dela me deu, é óbvio, a medida da intimidade que havia ali. Para completar o absurdo, ela só voltou a São Paulo na noite da quinta-feira, depois de postar mensagens enigmáticas e provocadoras. Tendo ela ido para a casa da filha e fugido de um contato direto comigo, marcamos o almoço de hoje para apararmos as arestas – profissionais, sobretudo – e nada me preparou para encontrá-la já meio alta quando eu cheguei num lugar que pedia compostura. E não vulgaridade, berros e provocações. Quem são vocês para se meterem em briga de marido e mulher?

Linda

Talvez o que eu gostaria de ouvir fosse que ele me queria, que o sucesso da editora era só um subproduto da ligação forte que nos soldou desde o começo, a ponto de termos ficado irreconhecíveis para nossos amigos e, especialmente, para nossos familiares. Mas como diz um de nossos autores do Recife, não se pode nessa vida começar largo e terminar estreito. Fiz sacrifícios sem conta para que nada atrapalhasse o bom andamento da editora e, em dado momento, percebi que estávamos tão entrelaçados que já não fazia qualquer sentido irmos cada um para sua casa ao fim do dia, visto que precisaríamos estar juntos na manhã seguinte. Foi assim, admitidamente, que a editora alugou uma suíte num hotel do Itaim e que nosso relacionamento ganhou outro patamar. O que vale dizer que acabei uma relação conjugal que já tinha há cinco anos, ao passo que ele, pelo que me consta, nada tinha a perder, salvo, evidentemente, o rosário de cachos amorosos que foram aparecendo com o tempo. Se meu passado não vem ao caso, mesmo porque ele não suportaria ouvir um terço sem sucumbir à apoplexia de seu machismo, o certo é que o que contava era o dali para a frente. Sei que tem coisas que integram a natureza das pessoas e não posso evitar que ele seja naturalmente sedutor. Afinal, é um escritor, está treinado para isso. Mas quem garante que eu também não sei ser? Fiquei no Rio a contragosto para que ele sentisse que eu também sabia tratá-lo na mesma moeda, e Leôncio, o músico, se divertiu com a ideia de que Daniel estava roendo todas as unhas aqui quando lá, os círculos homossexuais de meu amigo só me proporcionaram boas risadas e muita amizade. Na verdade, até me custa admitir que nada houve de sexo, salvo na cabeça enfermiça de Daniel, que mede tudo pela régua que aplica a si próprio, ou pela que tem entre as pernas. Se achei bom que viéssemos até aqui por conta da sem-cerimônia dele em me apertar em público e urrar como se estivéssemos em outro lugar, queria, por outro lado, que o Delegado Porciúncula considerasse que é meu direito não registrar nenhuma queixa e aqui dar o caso por encerrado. O que mais remanescer pendente entre nós, vamos nos acertar sozinhos.

Daniel

Talvez eu devesse, mas não pretendo agradecer a Linda por ter retirado a queixa, dando por terminado o episódio. Eu só queria deixar registrado ao delegado Porciúncula que essa história ainda pode acabar bem, apesar de aparências e safanões. Não sei se a escrivã – que hoje ficou de espectadora – tem experiência de campo com essas coisas entre homem e mulher. Sei que esse eixo anda caindo em desuso em certos meios. No nosso caso, tudo nos levou a um entrelaçamento louco desde a hora um, e isso foi nos conduzindo a acumular pautas que nos mantivessem ligados, mesmo com o risco de esmigalhar o cerne do afeto. Uma editora, o convívio com as idiossincrasias alheias, a tentação permanente da sedução de parte a parte, eleva a temperatura em uns graus, o que pode acarretar as explosões já vistas. É uma verdade de aceitação universal que o amor não obedece à lógica nem muito menos ao bom senso. Se ela acha que eu nada tinha a perder quando unificamos interesses perigosos, ela se engana. Perdi o afeto e desfiz a fantasia de muitas mulheres porque Linda simplesmente devorou e se apoderou de tudo o que eu poderia ter para dividir com meu público. Com a publicidade involuntária ou não que esse romance entre nós foi ganhando desde os primórdios, com todas as consequências que ela alega ter sofrido, de minha parte também o peso não é menor – e quero que isso conste do BO. O que nos iguala aqui é que, apesar desses reveses malsinados, estou disposto a ir para o inferno com essa mulher, se preciso for. O pior depoimento contra o gênio de um escritor é a acomodação e a pieguice. É o lugar comum e o chavão. Mas ainda não vi na literatura, sequer na minha própria, algo que se comparasse à vontade de mergulhar nessas carnes e afundar o nariz nesses cabelos que vocês veem aqui. Se preciso for, vou voltar a sacudi-la, estapeá-la e apertá-la, se esse for o preço para que ela saiba que sem ela a vida ia perder mais do que um Norte, mas também o tempero. O destino da Krausz & Goldfarb, até bem desenhado desde o começo, agora é o que menos me interessa. Isso dito, obrigado a todos e desculpem o entrevero. Yala, mulher, vamos embora daqui!