Entre as frases caricatas da ex-presidente Dilma Rousseff, ela teria dito: “sempre que você vê uma criança, há um cachorro atrás”. Mesmo sem saber o que ela quis dizer, o seu diagnóstico pode refletir comportamentos individuais, mas não interpreta exatamente o fenômeno social da presença crescente dos animais domésticos na vida familiar. Na verdade, o que se vê não são os cachorros correndo atrás das crianças. Os animais domésticos (os pets), especialmente os cães, estão tomando o lugar das crianças. Exagero? Um pouco. Mas, o que está ocorrendo é o declínio continuado do número de crianças nas famílias brasileiras, perdendo o seu lugar nos afetos para uma presença crescente de animais de estimação. De acordo com o Instituto Pet Brasil, em 2018, o Brasil tinha 54,2 milhões de cães de estimação nos lares brasileiros, demonstrando que “cada vez mais pessoas e famílias buscam um animal de estimação para companhia, dar e receber afeto e atenção”. No mesmo ano, o Brasil tinha apenas 35,5 milhões de crianças com até 12 anos (1,5 cães para cada criança) e 19,3 milhões de crianças de zero a seis anos (quase três cães domésticos para cada criança com menos de seis anos).
139,3 milhões de animais de estimação
Nada contra a interação entre humanos e animais e o afeto das pessoas pelos cães, muitas vezes recurso para fugir da solidão e do isolamento do mundo moderno, acompanhando também o envelhecimento da população. O que é preocupante na perspectiva da nação, é este movimento de declínio do número de filhos com aumento dos animais domésticos, numa forma de migração do afeto das famílias para os pets. As novas gerações não querem ter filhos, temem as dificuldades do mundo moderno, o custo com o cuidado e o desenvolvimento de uma criança, o tempo necessário de dedicação, e os conflitos das mulheres entre a maternidade e a atividade profissional. Mesmo que a criação de pets venha custando cada vez mais, não se compara o seu custo com o das crianças, sem falar na dedicação e cuidados que demandam os filhos.
De acordo com o Instituto, está ocorrendo uma “humanização” dos animais domésticos, de modo que, “hoje em dia, o pet não está mais no quintal de casa. Ele está no sofá da sala e na cama do tutor, criando seu espaço como membro da família. Isso criou um vínculo amoroso e familiar” (médico-veterinário Pedro Marchan). Claro que as crianças fazem parte desta convivência com os animais domésticos, mas num ambiente familiar no qual são cada vez menos para um número crescente de pets (especialmente cães).
Num país com tanta pobreza e desigualdades sociais como o Brasil, é chocante que o Brasil seja um dos maiores mercados mundiais de pets, atrás apenas dos Estados Unidos e da China. Em 2020, as empresas do mercado de pets faturaram R$ 40,8 bilhões (valor que deve subir para R$ 46,5 bilhões neste ano), com destaque para empresas produtoras de alimentos, com R$ 26,8 bilhões de faturamento e clínicas e hospitais veterinários, com R$ 7,3 bilhões de faturamento. Isto representaria, em 2018, cerca de 0,36% do PIB brasileiro. Numa economia cambaleante, o faturamento das empresas que atuam no setor cresceu em 2020, e deve crescer mais de 6% neste ano de 2021. O conjunto das atividades voltadas para o segmento de pets geraram, em 2018, cerca de dois milhões de empregos, formais e informais
Bom para a economia e para a renda da população que, no entanto, desperta um grande incômodo, quando se compara com o dramático crescimento da pobreza e mesmo da fome no Brasil. O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar identificou que 19 milhões de brasileiros passaram fome no ano passado, e mais da metade dos domicílios (55,2%) enfrentaram algum grau de insegurança alimentar. Independente da pandemia, em 2019, eram dez milhões de famílias vítimas da fome.
Possível dizer que este estado de pobreza e fome teria sido maior se não fosse a dinâmica do setor de pets, gerando emprego e renda, como se a classe alta e média, alimentando e cuidando dos seus cães e gatos, oferecesse emprego e transferisse renda para a população pobre. Na perspectiva mais geral do desenvolvimento, o Estado brasileiro deveria investir em atividades que, além de gerar emprego e renda, ampliassem a oferta de ativos sociais e melhorassem a qualidade de vida dos brasileiros. Que tal pensar em educação, para aumentar as oportunidades de crianças e jovens que penam, atualmente, em escolas públicas de qualidade sofrível; e saneamento, para melhorar as condições sanitárias e a qualidade de vida, lembrando que metade dos domicílios brasileiros não têm esgoto sanitário, e 31% não têm acesso à água encanada. Investimentos nessas duas atividades – educação e saneamento – geram renda e emprego em larga escala e, ao mesmo tempo, dão impulso ao desenvolvimento da nação.
Por outro lado, na medida em que o Estado investisse na educação pública de qualidade, as famílias teriam reduzido os custos com a educação privada, o que contribuiria para reanimação da reprodução. Mais ainda se os governos fizessem um grande esforço para a ampliação da oferta de creches, o que permitiria a participação maior e mais confortável das mulheres com filhos no mercado de trabalho. Os casais teriam mais confiança e segurança para ter filhos e, desta forma, aproveitar as vivências incomparáveis do amor filial, o tempo para dedicar ao afeto, à atenção e ao amor.
É verdade que, no meio da crise financeira do Brasil, não será possível avançar muito nesses investimentos. Neste aspecto, os cachorros (seus donos) poderiam dar uma contribuição, pelo menos no financiamento dos investimentos nas crianças. Vamos supor que, para cada cão doméstico, fosse paga uma taxa para a formação de um fundo especial de desenvolvimento infantil que financiasse um ousado programa de creches. Míseros cem reais por mês dariam uma receita anual de R$ 65 bilhões, que cobriria os gastos da oferta de ótimas creches para todas as 19,3 milhões de crianças de zero a seis anos. Assim, quanto mais cães domésticos viesse a ter o país, mais recursos para a construção e a operação de creches, de modo que as crianças ampliariam sua presença no afeto das famílias. Muito bom para os pais e excelente para a sociedade brasileira, e mesmo para o desenvolvimento do Brasil. Os cães deixariam de tomar o lugar das crianças no afeto e passariam a compartilhar com estas a afetividade da vida familiar.
A paparicarão de petz é uma questão bem doentia mesmo. Mas acho que o problema da desigualdade sócio/econômica, da crise de afetos, da angustia das mulheres entre a vida profissional e familiar é muito mais complexa do que o aumento do número de petz e os gastos com eles. Há caminhos mais profundos e duradouros para investimentos em serviços básicos. O que falta é vontade política. O que no Brasil, aparentemente, nunca!