Nelson Freire, considerado um dos maiores pianistas de todos os tempos e detentor de vários prêmios – Crédito: Reprodução/Grammy Awards.

 

Quando ouvimos os registros de Nelson Freire, sentimos seus dedos deslizarem nas teclas do piano como um veludo. Os noturnos de Chopin que o digam. Talvez essa seja a maior marca desse grande artista que levou o Brasil aos maiores palcos de concerto do mundo: a delicadeza e elegância com que sempre executou seu repertório. Nesta segunda-feira de Todos os Santos, as cortinas fecharam-se definitivamente para o mineiro de Boa Esperança. Poucos dias após completar 77 anos, Freire faleceu em sua casa no Rio de Janeiro. 

Este grande brasileiro fazia parte de uma geração de pianistas que trouxe nomes como Martha Argerich e Friedrich Gulda, aluno do mesmo professor que Freire teve em Viena. Argerich tornou-se sua amiga inseparável. Gravaram juntos obras de Rachmaninoff e Bartók; sonatas para dois pianos de Mozart e, acima de tudo, mantinham uma sintonia de almas gêmeas. A argentina, por sinal, passou um tempo com o amigo em 2019 no Rio de Janeiro, quando ele teve que fazer uma cirurgia no braço direito, após fratura óssea. Dali em diante, seus problemas de saúde se intensificaram, forçando-o a cancelar diversos concertos e participações em bancas dos mais prestigiados concursos de piano pelo mundo afora.

Era a coroação de uma carreira coberta de glórias, prêmios e superação de desafios. A perda precoce dos pais em acidente de ônibus teve forte impacto nas perspectivas do jovem pianista que teria toda uma jornada para seguir e tentar se firmar profissionalmente no cenário musical. O talento excepcional e a determinação, porém, conduziram o seu destino. Ganhou de Juscelino Kubitschek uma bolsa de estudos para estudar na capital austríaca. 

Em 1964, Freire conquistou o primeiro lugar no Concurso Internacional de Piano Vianna da Motta em Lisboa e em Londres recebeu as medalhas de ouro Dinu Lipatti e Harriet Cohen. Seguiu sua carreira internacional, dando recitais e concertos nas maiores cidades da Europa, Estados Unidos, América Latina, Japão e Israel. Trabalhou também com muitos dos mais prestigiados regentes, incluindo Pierre Boulez, Eugen Jochum, Lorin Maazel, Charles Dutoit, Kurt Masur e André Previn.

Freire tinha 24 anos quando o The Times o saudou como “um dos maiores pianistas desta geração, e de todas as outras”. Apresentou-se como convidado de orquestras de prestígio, como a Berliner Philharmoniker, Münchner Philharmoniker, Bayerische Rundfunk Orchester, Royal Concertgebouw Orchester, London Symphony Orchestra, Royal Philharmonic Orchestra, Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, Orchestre de Paris e outras orquestras de Boston, Chicago, Cleveland, Nova York e Filadélfia.

Inúmeros momentos icônicos marcaram a trajetória deste mineiro de “execução decorosa”, como o qualificou o The New York Times. Em Varsóvia (1999), Freire triunfou com sua interpretação do segundo concerto para piano de Chopin, marcando os 150 anos de aniversário da morte do compositor. Teve contrato de exclusividade assinado com o renomado selo Decca e o primeiro CD produzido foi dedicado, naturalmente, ao polonês, que ganhou aclamação unânime da crítica musical internacional. A gravação recebeu o Diapason d’Or e o prêmio Choc du Monde de la Musique. Foi considerado pela Revista Época um dos cem brasileiros mais influentes do ano de 2009.

Nomeado pela Philips para sua série de “Great Pianists of the 20th Century” em 1988, durante décadas Freire se recusou a fazer gravações, por acreditar que música só se fazia ao vivo, diante do público. No entanto, sua gravação dos 24 Prelúdios de Chopin recebeu o Edison Award. No Brasil, o álbum de noturnos de Chopin, lançado em 2010, foi seu primeiro trabalho com Disco de Ouro pela ABPD, tendo mais de 40 mil cópias vendidas. 

Em 2019, recebeu o International Classical Music Award por toda sua obra. Também em 2019 foi agraciado na Argentina com o Prêmio Konex Mercosur como personalidade da Música Clássica da América Latina, prêmio que é concedido a cada 10 anos. Em dezembro de 2016 recebeu o título de Doutor Honoris Causa pela Universidade Federal de Minas Gerais. Internacionalmente, foi condecorado com a Ordre des Arts et des Lettres e a Ordre National de la Légion d’Honneur, ambas do governo francês. Na sétima arte, a vida de Freire se tornou documentário dirigido por João Moreira Salles em 2003, que ganhou dois prêmios no Grande Prêmio Cinema Brasil. 

Freire era daqueles artistas cujas aparições eram ansiosamente esperadas. Músico discreto e humilde, cativou os ouvintes com sua sonoridade profunda, sua mistura de reflexão, intimismo e generosidade, sua forma de tocar aparentemente sem esforço – sendo, no entanto, inimigo de qualquer superficialidade. O violinista francês Renaud Capuçon o cumprimentou como um “pianista poeta” no Twitter. Deixa um legado de alta qualidade. Lembraremos, entre outros, de seu Totentanz de Liszt, do seu Brahms, do seu Chopin ou mesmo de seu álbum “Brasileiro”, como prova de amor incondicional por sua pátria, que um dia – esperamos – irá reconhecê-lo com a grandeza que merece. 

Para ilustrar sua arte, trazemos Nelson Freire nesse singelo registro da Dança dos Espíritos Abençoados extraída da ópera Orfeu e Eurídice, de Gluck, peça pela qual ele tinha um afeto especial: