Para nós, latino-americanos, o populismo é um velho conhecido. Presente em nossa história política desde os anos 1940, com Vargas, e fortalecido nos anos 1960, com políticos como Ademar de Barros e Jânio Quadros. Nessa época, alguns estudos foram publicados a respeito por Francisco Weffort (O populismo na política brasileira) e Octavio Ianni (O colapso do populismo no Brasil). Normalmente, o conceito era associado a políticos de direita. Recentemente, o populismo ganhou status teórico na esquerda, com os trabalhos de Ernesto Laclau (La razón populista) e Chantal Mouffe (Por um populismo de esquerda). Porém o populismo, nos dias de hoje, ganhou maior visibilidade com os políticos de extrema direita, como Viktor Orbán na Hungria, Andrzej Duda na Polônia e, sobretudo, Donald Trump nos Estados Unidos, embora a esquerda guarde o seu quinhão com Nicolás Maduro na Venezuela, isso quando falamos em regimes políticos. No entanto, é preciso ir além, com a identificação de movimentos e líderes de direita populistas, como Marine Le Pen na França e Matteo Salvini na Itália. Porém outra vez temos também líderes de esquerda no mundo do populismo, como Jean Luc Mélenchon na França ou, de centro, como Beppe Grillo na Itália. Jair Bolsonaro, inclusive, é tido como uma expressão burlesca do populismo de extrema direita em ascensão mundial. A variedade é grande, e o problema conceitual mantem-se: o que eles têm em comum?
A imprecisão do conceito refere-se ao fato de serem muito diferentes as situações denominadas como populistas, mas também a sua ideologia amorfa, não formalizada. O liberalismo tem pensadores clássicos, assim como o socialismo, e mesmo o anarquismo, enquanto o populismo apenas agora alguns estudiosos tentam teorizar essa política[1].
O populismo que conhecemos no Brasil e na América Latina, com Perón na Argentina e Gaitán na Colômbia, por exemplo, foram fenômenos relativamente distintos do atual. O populismo latino-americano de meados do século passado era tido como uma expressão de países subdesenvolvidos, movimento marginal em um contexto de Guerra Fria. Hoje ele se manifesta também, e sobretudo, em países ricos e num contexto internacional muito distinto. O avanço dos regimes populistas parece revolucionar a política no século XXI. Pelo menos é o que sugere, entre outros, Pierre Rosanvallon, em seu livro – O Século do Populismo.
Aparentemente, o populismo hoje representa um sinal de declínio dos partidos políticos, pelo menos em países como Itália e França, embora não seja, ainda aparentemente, o caso dos Estados Unidos e do Reino Unido. Ou representa o crescimento do abismo entre a classe política e a sociedade, assim como a dissipação da clivagem esquerda-direita.
Distintamente do que normalmente se imagina, o populismo, hoje, é a expressão do conflito entre duas concepções de democracia. A concepção liberal, dominante, e a concepção iliberal nascente. Claro que aqui está se falando não de movimentos populistas[2], mas de regimes populistas. Sobre estes é possível desenhar algumas características comuns, apesar de suas diversas especificidades nacionais. Quatro pelo menos valem ser ressaltadas.
A primeira característica é que os regimes populistas estão baseados na noção do povo uno. O povo é sempre identificado com o “nós”, e os que não são do povo são os “outros”. Estes outros, exteriores à Pátria, podem ser imigrantes, estrangeiros, elites ou comunistas, pouco importa o que este termo queira dizer. Para os populistas, o povo é a figura central da democracia. Chávez, na Venezuela, declarava: ”Tu não és mais Chávez, tu és o povo”. Na propaganda dos populistas de direita na França, o slogan do Front Nacional era: “ Le Pen, o povo”. Donald Trump dizia: “Eu sou a voz de vocês”.
Sociologicamente, o povo é uma heterogeneidade, quem lhe dá unidade é o líder. E o povo uno tem um inimigo, definido sempre de forma vaga, e que muda em cada local: oligarquias, globalização, imigrantes, comunismo. Inimigo impreciso, mas eficiente para unir o povo em torno de seu líder. Assim, na sociedade pós-industrial, o conflito capital-trabalho é substituído pelo conflito entre nós e eles, povo e elite, trabalhadores e comunistas. Daí a centralidade do conceito de antagonismo, de democracia polarizada, e não pluralizada, polar e não plural. O objetivo maior do populismo é refundar a democracia, por isso desenvolve uma teoria da democracia distinta da liberal.
A segunda característica dos regimes populistas é que eles desenvolvem uma nova teoria da democracia, baseada em três elementos:
- Democracia direta (referendo);
- Visão polarizada e hipereleitoralista (rejeição dos corpos intermediários, domesticação das instituições não eleitas – Judiciário e mídia), e a ideia de
- Uma vontade geral expressa espontaneamente, sendo papel do líder canalizá-la.
O papel do líder é refundar a democracia, dando ao povo sua centralidade. Com isso, supera-se o sentimento de uma má representação e de uma invisibilidade que os indivíduos ganham na sociedade contemporânea.
Nesse sentido, a aclamação popular é a forma acabada de democracia, a expressão do povo homogêneo e uno. Daí o valor do referendo[3]. Na sua “teoria democrática”, os populistas repudiam o liberalismo, insinuando por vezes a primazia da soberania coletiva sobre o indivíduo. Contraditoriamente, sugere a plena e total liberdade individual, para que cada um possa fazer o que lhe dá vontade: tomar ou não tomar vacina, ter armas ou não, usar o cinto de segurança ou não etc. Putin, na Rússia, declara: “O liberalismo tornou se obsoleto”. Orbán, na Hungria, por sua vez, afirma que “uma democracia não é necessariamente liberal”.
Em conformidade com a teoria da “democracia iliberal”, a terceira característica é a modalidade de representação: homem-povo, líder/mito, capaz de remediar as distorções da representação parlamentar. A democracia populista não necessita de poderes constitucionais distintos e independentes, todos devem obedecer ao líder eleito, única autoridade reconhecida, porque dá a unidade do povo. Não há necessidade de partidos, pois o líder fala direto com o povo, e na sua linguagem. Por isso, o sonho populista é a democracia direta, sem os corpos intermediários, em particular os não eleitos, como o Judiciário, considerado nefasto. O apelo direto ao povo é o meio de se livrar do inimigo, a eleição, o único meio de expressão da democracia. Os meios de comunicação são perturbadores da expressão popular, por isso também devem, como o Judiciário e o Parlamento, ser controlados pelo Poder Executivo.
A quarta característica do regime populista é sua feição de um regime de paixões e emoções. Elas são basicamente de três naturezas: de intelecção (conspiracionismo), de posição (sentimento de abandono) e de ação (rejeição).
As emoções de intelecção baseiam-se no fim da confiança nas instituições. Inclusive desconfiança na mídia, pois o excesso de informações torna o mundo mais opaco, mais complexo, menos inteligível pelas pessoas simples. Cria um terreno de opacidade e complexidade do real, cria a impotência do entendimento. As narrativas conspiracionistas visam, justamente, restaurar a coerência de um mundo sem sentido, percebido como indecifrável e ameaçador. As teorias do complô – compostas de respostas simples aos problemas de cada um – têm a função psicológica de dar segurança às pessoas em face de um mundo indecifrável,
As emoções de posição manifestam os sentimentos de ressentimento democrático e de abandono criado pela ação dos políticos em geral, que pouco tomam em consideração os problemas e interesses da população. O mundo da política é um mundo ensimesmado, que toma em consideração apenas seus próprios interesses[4].
Finalmente, as emoções de intervenção, que retratam a reação das pessoas em face do aumento da desigualdade, do desemprego e da fome. É a expressão da raiva e do medo, da repulsão e da frustração, em face de um mundo que muda muito rápido, e os políticos, nem os governos, não cuidam das necessidades das pessoas, abandonando-as. Seu grito de guerra mais conhecido e contundente é: Que se vayan todos! Grito dos manifestantes argentinos em dezembro de 2001, e que se tornou famoso no mundo inteiro.
As características dos regimes populistas trabalhadas por Rosanvallon constituem um avanço em relação ao conhecimento até então existente. Mas nem sempre a fluidez da política permite ser assim facilmente apreendida. As situações são muito distintas e as manifestações populistas muito singulares.
Não se pode visualizar com clareza o futuro do populismo. Há dois anos atrás parecia que ele avançava de forma assustadora. Porém a derrota de Trump, de Netanyahu, de Salvini, do partido Alternativa para a Alemanha mostram que a vida da extrema direita populista não será fácil. Mas os ventos podem mudar, na França surgiu um novo líder de direita que deixou Marine Le Pen à sua esquerda, o jornalista Eric Zémmour, e nos Estados Unidos, com o desgaste de Joe Bidem, Trump pode voltar.
De toda forma, a proposição do populismo em refundar a democracia nos obriga a refletir sobre a questão, e desenhar o que entendemos e queremos com a democracia. Qual a nossa proposição? O que temos a dizer aos abandonados, aos ressentidos, aos que têm medo dos processos de mudança, que não entendem o que se passa e ficam temerosos do futuro? O que propomos para termos um modelo de desenvolvimento sustentável? Quais as medidas para extinguir a miséria e reduzir a desigualdade? Desafio de todos os democratas.
[1] Ernesto Laclau e Chantal Mouffe – Populismo y hegemonia.
[2] A distinção é importante, mas preferimos não abordá-la para não desviar de nosso objetivo, desenhar as características dos regimes populistas, conforme sugere Rosanvallon.
[3] Causa-me estranheza que Bolsonaro, ao perder a votação quanto ao voto impresso, não tenha levantado a bandeira do referendo para saber a real vontade do povo.
[4] Os recursos destinados aos partidos políticos e as emendas parlamentares são exemplos de como o desconhecimento dos interesses populares é cada vez maior, assim como o aumento dos salários dos altos cargos do governo, particularmente do Judiciário, em plena crise sanitária e econômica.
comentários recentes