“O Brasil, em vários momentos, soube acompanhar as mudanças no mundo”.Ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, em Crise e Reinvenção da política (Companhia das Letras, Rio, 2018, p. 175).

Há uma dualidade perversa na política externa brasileira. Do lado institucional, está o Ministério das Relações Exteriores. Onde funciona uma das respeitadas Casas da diplomacia mundial, o Itamaraty. De outro lado, no Palácio do Planalto, funciona uma assessoria para assuntos externos. Dirigida pelo ex-ministro, Celso Amorim.

Na prática, a institucionalidade do Itamaraty está operando a reboque da vontade pessoal do presidente da República. Celso Amorim é instrumento desse desígnio. A que serve tal esconsa manobra? A pretenso desejo do presidente de se tornar liderança mundial.

Os assessores presidenciais não tiveram chance de avisar o chefe que esse objetivo depende menos do gosto presidencial. E depende mais de circunstâncias geopolíticas, poder global, acertos de bastidor. E até de soft power. O resultado foi um desconcerto. Pondo por terra a ilusão do presidente. E criando um embaraço sem precedente na política externa brasileira.

A política do Itamaraty tem respeitável tradição. O Brasil participou da Segunda Guerra Mundial (1939-45), contribuindo para derrotar o nazismo. Após titubeio do ex-presidente Getúlio Vargas. Logo corrigido em encontro com o líder Franklin Roosevelt. Por sua vez, o então presidente Juscelino Kubitschek (1955-60) patrocinou a Operação Pan-Americana, que reuniu os países do hemisfério numa política confluente de parceria continental. Nos anos de 1970, ingressou oportunamente na política de descolonização na África. Ainda que contrária aos interesses portugueses.

Em 1999, participou do esforço para criação do G 20, operacionalizado pelo embaixador Seixas Correia. Coordenado por Brasil, México e Argentina. E, para ser justo com a história, presidiu, por meio do embaixador Osvaldo Aranha, a sessão da ONU que aprovou a resolução 181, em 1947. Essa resolução prevê a criação dos Estados de Israel e da Palestina.

Portanto, o país tem um patrimônio de conceito e de lucidez a zelar. Que não pode ser confundido com questões pessoais. Não cabem em política externa ambições individuais. Por mais largas que estas sejam, serão sempre menores do que a magnitude dos objetivos nacionais. E, nessa matéria, o autoengano cobra sempre preço elevado.

No atual conflito entre Israel e Hamas, o governo brasileiro acentuou a descoordenação oficial. Entre uma política coerente do Itamaraty, consistente com a história. E uma atuação imprudente do presidente. Vesga sob olhar de hiper dimensionado prestígio. Irreal. Foram três os erros do governo: demorou a cobrar o terrorismo do Hamas; demorou a cobrar a libertação dos reféns; e acusou erradamente de genocídio a ação do governo Israelense.

Ou seja, faltou visão estratégica ao governo brasileiro. E sobrou submissão inconcebível ao chefe. Na história da política internacional, “quando se pensa que acontecerá o inevitável, ocorre o imprevisto”. Mas erros podem ser prevenidos. Com o exercício da prudência. E avaliação segura e continuada das estratégias. O que faltou a Tony Blair, a Boris Johnson, a Donald Trump. E terá faltado ao presidente brasileiro.

Vale a pena ressaltar: a análise da modernização das economias da China e da Rússia mostra muita coisa. Começando que tiveram cursos diversos. A economia chinesa é exemplo exitoso de trabalho gradual e coordenado que vem de Deng Xiao Ping. Ao contrário, a economia russa é um fracasso construído de conflito de caráter colonial. E de crescente desconfiança com a natureza da gestão do governo em relação aos que lhe fazem oposição.

Para concluir, volto ao ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Ele descreveu uma certa ideia de Brasil. E procurou sempre colocar-se simetricamente aos interesses do país.