Sérgio C. Buarque

Era uma vez um rico e belo país chamado Belíndia. Mas parecia condenado ao fracasso, por tantas oportunidades perdidas ao longo da história. Décadas de baixo crescimento e enorme desigualdade social alimentaram a emergência de dois líderes salvacionistas e populistas, Lucho e Bolcho, que dividem Belíndia numa polarização política entre grupos radicais e intolerantes, disputando espaços das redes sociais para  fabricação de mentiras, distorção dos fatos e invenção de mitos. No meio desta guerra ideológica fanática, amizades se desfazem e famílias se dividem, e as decisões políticas diante da crise nacional emperram e se arrastam no tempo. Uma maioria dispersa observa, incomodada e impotente, o conflito insensato das minorias organizadas e estimuladas pela agitação carismática dos seus líderes. Depois de anos desta polarização, e sem muitas alternativas, os belindianos resolvem apostar numa solução radical: um duelo direto entre os líderes das duas facções, Lucho e Bolcho, numa luta de vida ou morte pelo domínio do país. Quem sobreviver, assume o comando total sobre Belíndia. Os perdedores não podem mais protestar e combater o vitorioso, aceitando o destino da nação.

Numa luta de vale-tudo, os dois líderes se enfrentam num grande ringue armado no meio da Praça Central da capital, com as torcidas separadas por uma muralha e um grande pelotão da polícia. Transmitido ao vivo pela televisão, o combate pode ser acompanhado pelos belindianos e pelos espectadores de todo o mundo, curiosos com o estranho duelo. A autorização para os grandes canais de televisão transmitirem a disputa deve gerar uma receita de US$ 30 milhões, para irrigar os cofres públicos.

As torcidas são igualmente aguerridas e violentas, mas existe uma evidente desigualdade na capacidade física dos duelistas. Lucho é mais baixo e mais velho, e tem uma barriga proeminente, que atrapalha seus movimentos, diante de um Bolcho atlético e ainda firme, apesar da fragilidade do abdômen, depois de uma facada e várias cirurgias. A Lucho, contudo, sobra malícia e jogo de cintura, importantes fatores num ringue de vale-tudo. Como o duelo foi marcado para outubro, mês normalmente utilizado para as eleições, os dois tiveram tempo de se preparar física, política e psicologicamente. Lucho, mais fraco, precisava de bastante exercício para recuperar a forma de velho peladeiro, tendo contratado Anderson Silva como treinador e conselheiro. Bolcho, mais convencido da sua forma física e, nitidamente, subestimando o adversário, não se empenhou, até que os filhos convidassem José Aldo para um treinamento e algumas orientações básicas ao competidor.

Foram semanas de expectativa e notícias desencontradas nas redes sociais, ameaças, insinuações e muitas provocações dos dois desafiantes. O mundo não conseguia entender o inusitado processo de decisão política em Belíndia, país ainda considerado democrático, apesar do acirramento das tensões e da violência de luchistas e bolchistas. Na medida em que se aproximava o dia da luta, incitados pela imprensa e pelas provocações dos duelantes, os belindianos viviam num estado de grande excitação, e medo das consequências daquela invenção maluca de resolver conflito político num duelo. Afinal, o destino de Belíndia seria definido pela brutalidade, e não pela inteligência, negociação e entendimento político.

Quanto mais perto do dia do duelo, aumentavam também o nervosismo e a insegurança dos dois combatentes, e a emoção dos militantes luchistas e bolchistas, em múltiplas manifestações nas capitais, não faltando violentos confrontos de rua e feridos de cada lado. Alguns dias antes do evento, correu um boato caviloso, insinuando que Lucho teria desistido da luta.  Mensagens circularam rapidamente nas redes sociais, na tentativa de desmoralizar o líder. O desmentido foi rápido, aproveitando-se para denunciar que o adversário estava amedrontado e, por isso, desejava mesmo suspender o duelo.

Na véspera do duelo, foi rezada uma missa na Catedral de Belíndia, pedindo à padroeira nacional a proteção de Lucho, que iria arriscar sua integridade física em defesa do seu projeto de poder. Presente à cerimônia, com milhares de adeptos e membros destacados da Igreja Católica, Lucho rezou compenetrado e, na saída da catedral, fez um discurso sereno e emocionado diante das câmaras de televisão. No dia anterior, Bolcho e milhares de seguidores participaram de um culto evangélico no Templo de Salomão, conduzido pelo bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, com muitas bençãos e animada música Gospel.

Às sete horas e cinquenta minutos da noite do dia 3 de outubro, luzes fortes clareavam o ringue e multidões se distribuiam nas arquibancadas montadas em torno do palco central, com gritos de ameaças e estímulos aos seus representantes naquele ultimate fight, que revolveria, de uma vez por todas, a polarização política de Belíndia. As câmaras das televisões passeavam pela plateia e focavam no centro do ringue, onde o juiz esperava os lutadores. Bolcho foi o primeiro a aparecer no corredor, caminhando na direção do ringue sob os gritos eufóricos dos seus admiradores, e as vaias quase histéricas dos adversários. De calção verde e amarelo, expondo a incipiente barriga e peles flácidas, curvou-se nas cordas e entrou no ringue, saltando e balançando os braços para a torcida. Deu uma volta no ringue, e fez o sinal com as mãos, característico de duas pistolas. A platéia delirava e gritava slogans de apoio ao ídolo, confiante na sua força.

A saudação foi mais intensa quando Lucho apontou no corredor, e avançou rapidamente para o centro do palco, com seu calção vermelho, os braços levantados com o V da vitória. Lucho parecia mais enérgico, embora fosse entroncado e tivesse as costas meio envergadas pela idade. Os dois se encontraram no meio do ringue, olho no olho e gritos ameaçadores. “Vou te quebrar todo, comunista filho da puta, sou muito mais forte e jovem”, gritou Bolcho do canto esquerdo, iniciando as provocações para enervar o adversário. Lucho sorriu, fez um gesto de desprezo e respondeu: “É a força política que vai decidir este duelo, capitão de merda”.

Quando soou o gongo e o juiz fez sinal para início do duelo, o afobado Bolcho correu para cima de Lucho, e conseguiu acertar um golpe no lado esquerdo do inimigo, que rodopiou, tonto, e caiu. O líder do bolchismo tentou aproveitar, e pulou sobre o corpo estendido no chão. Antes que ele caísse com todo o peso sobre a vítima, mesmo ainda atordoado, Lucho teve tempo de dobrar o joelho direito, provocando um choque na barriga de Bolcho, tão forte quanto o seu peso. O mundo inteiro ouviu o grito abafado dos dois. Suspiros e gritos da platéia, susto e desespero com a dor dos seus ídolos. Curvado pela dor no abdômen,  Bolcho virou de lado, e se arrastou para o canto, afastando-se do inimigo. Enquanto isso, Lucho se apoiava no chão, levantando o mais rápido que pode, antes que Bolcho se recuperasse e iniciasse novo ataque.

À distância, e ainda assustados com o primeiro lance, os dois se observavam e se moviam nas laterais do ringue, preparando um golpe ou esperando a iniciativa do adversário. As duas torcidas não paravam de gritar, ora incentivando o seu ídolo, ora agredindo o inimigo. O barulho era aterrador, expressão da polarização política do país. Lucho preferia aguardar e aproveitar que a desvantagem da baixa estatura facilitasse os golpes na barriga machucada de Bulcho que, sabia, era completamente incapaz de controlar o ódio ao luchismo. “Vou abrir esta tua barriga nojenta, terminar o serviço que o incompetente do Adélio começou”, resmungou Lucho, com uma gargalhada. Como era previsível, espumando de ódio, Bolcho correu descontrolado para cima de Lucho, dando a ele a oportunidade de responder, metendo a cabeça bem em cima da enorme cicatriz. O golpe provocou uma fissura profunda no abdômen de Bulcho, que, mesmo com muita dor, prendeu a cabeça de Lucho com as duas mãos. Os dois cairam na lona agarrados, Bolcho tentando um estrangulamento de Lucho, que chutava, agora com as pernas, o ponto fraco do inimigo. Longos minutos de silêncio da plateia que observava os dois corpos se batendo, agarrados no chão.

O silencio absoluto no estádio era quebrado apenas por comentários sempre excitados das televisões, procurando informar o telespectador sobre os movimentos da luta. Aos poucos, os lutadores foram cessando os movimentos e fraquejando o combate. Depois de vários minutos de expectativa e medo, emergiu um suspiro prolongado e angustiado na plateia, quando parecia claro que os dois estavam completamente paralisados, inertes, Bolcho estrangulando o inimigo, que já não conseguia golpear a barriga do outro, banhada de sangue.

O juiz relutou, mas foi pressionado a subir no ringue, afastar os contendores e, dependendo das suas condições físicas, que pareciam precárias, suspender a luta. O empate não resolvia a polarização de Belíndia. Mas o juiz não poderia permitir uma tragédia. Quando ele chegou perto, viu uma enorme poça de sangue abaixo de Bolcho, espalhada no tablado. Como Bolcho estivesse paralisado, o juiz o empurrou. O líder do bolchismo virou de lado, trazendo o corpo inerte de Lucho pela cabeça. O juiz sentiu um tremor diante da cena apavorante. O silêncio parecia esmagar o estádio, os olhos dos torcedores e do mundo todo voltados para o juiz e os corpos espalhados na lona. Ele levantou-se, com um peso histórico nos ombros, aproximou-se do centro do ringue, e puxou o microfone. Os segundos de expectativa pelas suas palavras paralisaram o mundo. Até que ele proclamou o resultado do duelo: “Não podemos comemorar o resultado da luta, vendo estes dois corpos de grandes líderes completamente inertes. No entanto, neste momento solene e dramático, eu proclamo que Belíndia livrou-se da fanática polarização política. Viva Belíndia!”.