Estudos e notícias nos abrem os olhos: somos um país de insones. Não se dorme ou, talvez pior ainda, dorme-se mal. Dorme-se picado, o que faz o sujeito, no dia seguinte, se sentir um picadinho de couve ou de carne, um indefeso diante das batalhas do dia. Dormir mal, dispensável dizer, é uma tortura, que nos lembra a verdadeira e abjeta tortura que é a privação de sono. Sair de uma noite assim equivale a encarar a vigília numa ressaca braba: o filme do mundo roda sem graça, a existência pesa e nos abate. A situação é humilhante. Picados e moídos, mal suportamos o dia.
A insônia é um pesadelo. Morfeu e Hipnos se tornam surdos à nossa desesperada prece. Como a inveja, a insônia sempre tem os olhos bem abertos. Para fechá-los, compra-se o sono nas farmácias. Sono praticamente sem sonhos. Proust anotaria que só o sono natural nos traz os sonhos mais interessantes e mais vivos. “Morrer, dormir, talvez sonhar…”, diria Shakespeare a um mal dormido Proust. Na insônia, infelizmente, nem se dorme, nem se morre, nem se sonha. É uma forma de infelicidade, e uma das mais íntimas! Mas, para alegria geral da nação, desde 15 de outubro de 2021, a melatonina, o chamado “hormônio do sono”, foi liberada pela Anvisa; em dezembro chegou às farmácias; os especialistas pedem cautela… Infelizmente cautela não se vende nas farmácias…
Com sabedoria e graça, o compositor e cronista Antônio Maria escreveu que “A gente vive, passa por milhares de experiências (as mais intensas) para, afinal, convencer-se de que as melhores coisas da vida são comer e dormir”. Dormir até parece uma forma de comer: a gente se restaura, sente-se alimentado, nutrido, pronto para o urgente, senão urgentíssimo, exercício de viver. Dormimos, mas não nosso cérebro, pois este encerra suas atividades apenas com a morte que ele exige para si mesmo: a morte cerebral, aquela que nos lança naquele sono do qual jamais acordaremos (Que delícia!). A propósito, só a anestesia geral rivaliza com essa morte eterna, pois, como diz o neurocientista António Damásio, ela é mais que uma simples e completa analgesia…
Para nos sentirmos bem, é preciso termos a ousadia de dormir. Precisamos, como disse Guimarães Rosa, “beladormecer”, mas não, claro está, por cem longos anos! Precisamos dormir o sono reparador dos amantes saciados. Dormir no silêncio, embora este seja cada dia mais rarefeito. Dormir na escuridão, não obstante as onipresentes telas de celulares, tablets e afins. Dormir bem à noite para suportar o vexame dos dias, para suportar a corrupção nacional, pois o brasileiro, como observou Machado de Assis, “já nasce com a bossa da ilegalidade”!… Dormir e ter sonhos para contar: os mais loucos e delirantes, capazes de fazer Freud deixar cair o charuto…
Dormir com a delicada e segura ousadia com que Antônio Maria se entregava ao sono, a ponto de um dia ter deixado este bilhete para um amigo: “Se você me encontrar dormindo, deixe. Morto, me acorde”.
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