Hiroshima

Hiroshima

 

Foi no dia 06 de agosto de 1945 que os americanos jogaram uma bomba atômica sobre Hiroxima – há 78 anos, portanto – e três dias depois, outra bomba caiu sobre Nagasaki. Cerca de 80 mil pessoas morreram de forma imediata em Hiroxima; cerca de 40 mil em Nagazaki. O mundo acabara de ingressar na “era atômica” e a possibilidade de destruição total do nosso planeta entrou, para nunca mais sair, no imaginário da humanidade. Os cinemas brasileiros estão exibindo o filme “Oppenheimer” – uma bela história deste físico genial, considerado “ o pai da bomba atômica”.  Vale a pena ver o filme.

Desde muito jovem o drama de Hiroxima me impressionou. Meu pai, ainda nos anos quarenta do século passado, mesmo morando no Alto Sertão de Pernambuco, era um fiel assinante da Revista Seleções, uma publicação que se dizia “o melhor de revistas e livros”. Na verdade, Seleções era, no fundo, a publicação de uma editora norte-americana chamada  Reader’s Digest, que chegou ao Brasil em 1943 fazendo “relações públicas” para os Estados Unidos. O mundo vivia a Segunda Guerra Mundial, e alguns países da América do Sul simpatizavam com Adolf Hitler e o nazi-fascismo. A revista combatia Hitler, o comunismo e outros valores com os quais “Tio Sam” não concordava. Eu não tinha mais do que 10 anos quando li, pela primeira vez, o vocábulo  “Hiroxima”. Na Seleções.  Era um artigo assinado por um jornalista norte-americano, cujo título, que jamais esqueci, era exatamente este: “Brota Verdura em Hiroxima”… E falava que a terra contaminada, considerada estéril para sempre, estava produzindo flores e frutos. E trazia de volta uma narrativa sobre a explosão da bomba. A história da cidade arrasada mexeu com meus sentimentos. Passaram-se os anos, muitos anos. Deixei o chão natal e fui tentar cavar a vida lá fora.

– Algum tempo depois, já no Recife, eu  estava na Universidade, estudando à noite e trabalhando durante o dia, morando numa pensão modesta e vivendo a vida sacrificada do estudante pobre. Era uma época em que não havia programas do Governo para financiar os estudos desses desvalidos.

Meu emprego era numa empresa de pesca, ligada a um conglomerado japonês (Nippon Reizzo Kabushiki Kaisha), que caçava baleias no Nordeste brasileiro, e nos cinco continentes. Antes, pescara atuns. Aqui no Nordeste, onde as baleias vinham acasalar, eles tinham uma “armação” na Praia de Costinha, Cabedelo, na Paraíba.

Estudante de jornalismo, resolvi que iria fazer uma reportagem mostrando essa atividade tão sangrenta, que era  a morte de uma baleia. Foi a segunda vez que Hiroxima voltou a me incomodar. Com a permissão de um dos diretores locais da empresa,  o  sr.  Issao Ishigami, consegui  que o comandante do navio baleeiro me aceitasse junto  à tripulação. E lá fui eu.

– Embarquei com a população do baleeiro muito antes do sol nascer – e até o meio-dia duas baleias “mink” e um “cachalote” já haviam sido abatidas. Entre os tripulantes, havia um japonês, sério, caladão, rosto muito queimado pelo sol que, segundo se dizia – e não pude apurar se isso era verdade – havia perdido toda sua família na explosão da bomba, em Hiroxima: pai, mãe, irmãos, tios, primos – todos os que estavam lá no dia da explosão, simplesmente evaporaram. Ele servia na Marinha de Guerra japonesa, encontrava-se a bordo de um  torpedeiro no  Pacífico, só depois da rendição soube que havia ficado absolutamente só na face da terra. De volta à vida civil, algum tempo depois foi trabalhar nessa empresa que caçava baleia nos cinco continentes. Era um homem triste, que ria pouco, e sequer eu soube do seu nome, como aliás também não sabia o nome de grande parte do pessoal que trabalhava no escritório do Recife. Mas Hiroxima “me ficou sobre a carne, como uma nódoa do passado” –  com licença de Vinícius de Morais.

– Já repórter experiente e mais ou menos viajado, algumas vezes indiferente diante das grandezas e das misérias do mundo, coloquei meus pés e todos os meus sentimentos no chão de Hiroxima. Aquele mesmo chão que ardeu em agosto de 1945; aquele mesmo céu que foi tomado pelo  cogumelo venenoso e espalhou seu cheiro de morte pela cidade indefesa. E concluí para mim mesmo: Hiroxima não é para sentimentais.

Cheguei a Hiroxima procedente de Tóquio, num voo extremamente desconfortável, por conta do mau tempo. E no mesmo dia visitei os escombros de um escola que marcou o epicentro da explosão – que foram conservados para que as gerações futuras jamais esquecessem que já houve na terra o “Dia do Juízo Final”.

Bem próximo das ruínas da escola, estava o “Museu do Holocausto”, com centenas de  fotos espalhadas pelas paredes, grande parte delas feitas nos dias seguintes à explosão. Havia cenas indescritíveis e inacreditáveis. De uma delas, jamais esqueci: mostrava a foto de um senhor que se encontrava a cerca de 10 quilômetros do epicentro da explosão, e que se expôs à claridade, por poucos segundos. A unha do dedo mínimo de sua mão direita cresceu mais do que o comprimento da própria mão em menos de 24 horas – e menos de 36 horas depois ele estava morto. Havia cenas piores, fotos de pessoas com a pele largando do corpo, queimaduras horripilantes – uma visão muito mais tenebrosa do que “o inferno de Dante”. Gravações narradas em vários idiomas contavam a história da bomba. Cheguei em Hiroxima num mês de maio, a cidade, com suas largas avenidas povoadas de cerejeiras, seus bares frequentados por jovens, e sua cultura, que, para mim, pareceu semi-ocidentalizada, só em silêncio me transmitiu o legado de sua tragédia. E lembrei do japonês solitário, órfão de tudo e de todos, que conheci caçando baleias no outro lado do mundo. Lembrei da Revista Seleções e de sua reportagem “Brota Verdura em Hiroxima”, que nem sei se verdade era. No dia seguinte, “fui andar por aí”, tentar me desfazer de imagens e narrações tão impactantes.

Tomei um “ferry-boat” e fui até a Ilha de Miyajima, entrei de pés descalços num templo onde não havia uma única imagem, e pedi a Deus que não permitisse, jamais, que outra bomba atômica fosse jogada sobre qualquer cidade, de qualquer continente, sob qualquer condição, hoje, amanhã e sempre.