Obesity – autor não localizado.

 

Todos nós já vivemos estados de alma que transformaram situações triviais em aprendizado. Viagens potencializam experiências. Quando estamos cercados de referenciais de apoio, o inusitado perde o impacto. Longe deles, porém, ele ganha textura. Daí, o lado bom de viajar – a oficina da vida. Senão, vejamos.

Eu me registrava num hotelzinho de Belfast, Irlanda do Norte. Foi quando, pelo olhar da recepcionista, senti que algo acontecera. Virei-me e vi um homem muito gordo. Apoiando o lado esquerdo do corpo numa bengala metálica de quatro pés emborrachados, o baixo ventre se desdobrava numa cascata de banha e três abas eram discerníveis, a ponto de encobrir a zona pélvica.

Mal passou o umbral da porta, precisou de um minuto cheio para dar seis passos até a poltrona, onde despejou o peso. No trajeto mínimo, ele arfou, arquejou, resfolegou, chiou, sibilou, bufou e apitou como um órgão de igreja – fora de uso há décadas. Ele era enorme. Mas nada me impressionou tanto quanto os pés.

Pois ali, na distante fronteira sul da anatomia, secundária e instrumental para os magros, se trava uma luta desigual, visto que os pés não ganham massa muscular. Tampouco se desenvolvem na mesma proporção que o corpo que levam para passear. Pés, salvo por inchaço ou deformação, são mais ou menos iguais tanto para o homem de cinquenta quilos como para aqueles que,como ele, pesavam duzentos.

Ora, ele não usava nem sapatos, nem botas nem sandálias. Tinha sob cada pé uma espécie de almofada. Para prendê-la sob as grossas meias de compressão – quem as calça para ele? – um jogo de tiras sintéticas se enlaçava pelas pontas corrugadas de velcro.

É evidente que não fiquei olhando com ar embasbacado. Fotografei-o mentalmente e, até hoje, revelo os detalhes, sem conseguir retocar a imagem, no cômodo escuro da memória. No apartamento, passei bom tempo pensando em como ele dormia, acordava e tomava banho. Por certo, dormia sentado; acordava sonado; o banho devia ser uma operação

industrial e o pós-banho, um sem fim de toalhas. Por outro lado, imaginei o prazer sôfrego e lúdico que deve acometê-lo diante de uma bateria de frituras, grelhados, massas e doces.

Nessa hora, deduzi, os piores castigos vasculares e os maiores desequilíbrios metabólicos devem parecer multa barata a se pagar pela satisfação secreta de visitar o último enclave de prazer que ele reconhece. Todos os demais, imagino, lhe estão proibidos ou, no mínimo, obliterados pela missão desesperada de botar ar para dentro e para fora, e cuidar da trabalhosa ecologia a que lhe sujeitam as coisas mínimas da vida.

Só depois de muito elaborar, me ocorreu que o gordo irlandês me lembrava alguém. Claro, em certa medida, era o reflexo de mim mesmo. Então fiquei imaginando todos os olhares de esguelha que, por muito menos, eu próprio recebo. Minhas dúvidas sobre como ele leva a vida nas pequenas coisas, deve ser a mesma que as pessoas alimentam quando me veem e silenciam.

É certo que sou alto e tenho mais sorte do que aquele homem emparedado pela morbidez.

O mais desconcertante é que, horas depois, saciei a fome da meia-noite com uma pizza. Picado pelo remorso e tomado de algum constrangimento, ainda quis me contentar com a metade, mas terminei comendo-a inteira. Pergunto: como pode uma pessoa conhecer tão bem esse sinuoso processo mental e, ao mesmo tempo, sucumbir – certamente devido a sendeiras emocionais desconhecidas – a tanta irracionalidade?

Quanto mede a distância que separa uma dimensão da outra? Daí proceder o juízo de que o viajante viaja para se conhecer. E que não há caminho maior do que o percurso que se faz para dentro de si. Diante deste, o Japão é logo ali na esquina.