Bartolomé de Las Casas (autor não localizado).

 

Qualquer manual contando os momentos marcantes da linha histórica dos direitos humanos, culminando na Declaração da ONU de 1948, invariavelmente menciona a Magna Carta de 1215 e a Declaração de Direitos da Revolução Gloriosa de 1689, ambas inglesas, e as grandes Declarações do século XVIII: a americana, de 1776, e a francesa, de 1789. Considerando essa origem, um olhar decolonial, hoje em dia tão em voga, não deixará passar a ocasião para fazer a pergunta: “Direitos Humanos para quem, cara-pálida?”. A resposta é óbvia: para homens brancos e – considerando a origem do que viriam a ser os Estados Unidos – europeus. Ao que eu acrescentaria, para maior precisão: norte-europeus. Isso é um fato histórico. Mas, como sempre acontece nos relatos sobre as peripécias humanas, não conta tudo o que aconteceu, e a linha histórica acima delineada contém esquecimentos. É o que nos vem lembrar Giuseppe Tosi, filósofo e historiador ítalo-paraibano, que acaba de lançar um portentoso livro, Aristóteles e o Novo Mundo (Rio de Janeiro, Lumen Juris, 2021, 455 pp.), resultado de 20 anos de pesquisa sobre “a controvérsia de Valladolid”, ocorrida entre 1550 e1551, na Espanha, quando uma “junta” convocada pelo Imperador Carlos V reuniu-se para julgar a legitimidade da conquista.

Estávamos em meados do século XVI, e Portugal e Espanha tinham se lançado, “por mares nunca d´antes navegados”, na grande aventura que transformou a Terra, pela primeira vez e efetivamente, num Globo, “dilatando a fé e o império”, como anotou Luís de Camões. Mas as relações entre a cruz e a espada nunca foram, para dizer o mínimo, harmônicas, e nas caravelas que “passaram ainda além da Taprobana” os soldados a serviço do império e os missionários a serviço da fé nem sempre tinham a mesma opinião sobre a maneira de converter os nativos à cristandade. A controvérsia de Valladolid opôs, de um lado, o erudito e tradutor de Aristóteles que havia escrito um tratado defendendo a guerra justa contra os índios, Juan de Sepúlveda; de outro, o dominicano Bartolomé de Las Casas, “procurador dos índios”, defendendo a evangelização pacífica dos nativos e chegando ao ponto de sustentar que se legitimidade existisse naquela guerra, ela estaria ao lado dos índios contra a violência dos conquistadores!  Como eixo da discussão, a doutrina da “escravidão natural” do Estagirita. Mas embora Aristóteles figure no título do livro, a figura mais importante é o dominicano espanhol. Sua compreensão amparada nos Evangelhos, mas surpreendentemente moderna, a respeito da igualdade fundamental de todos os seres humanos, faz dele um contemporâneo nosso, diferentemente do grego.

Las Casas nasceu em Sevilha, em 1484, no seio de uma família desde cedo envolvida na conquista das “Índias”. O pai, mercador, chegou a participar da segunda expedição de Colombo, e o próprio Bartolomé, beneficiado por essa filiação, partiu aos 18 anos para o Novo Mundo, onde recebeu índios em “encomienda” e se tornou um próspero colono. Em 1507, ordenou-se sacerdote e, em 1515, deu-se sua “conversão”: libertou seus “encomendados”, abriu mão de suas propriedades e começou uma atividade infatigável – que incluiu dez travessias do Atlântico – em defesa da causa indígena. Assumindo o seu “ponto de vista”, Las Casas “faz-se porta-voz do horror indizível por eles vivido”, não apenas a “destruição física das suas vidas”, mas também o “colapso repentino e violento do seu sistema simbólico de valores”. Uma das práticas indígenas “contra a natureza” usadas como justificativa para a “guerra justa” era a do canibalismo. Las Casas, por óbvio, não a defende – como, aliás, não a defenderá mais tarde, contrariamente ao que se costuma crer, o cético Montaigne, que apenas a relativiza. 

Mas o dominicano não é um relativista, longe disso. Diferentemente do francês filosofando na sua famosa torre, Las Casas é um missionário católico empenhado em evangelizar os índios. Ele “não admite os pecados contra a natureza”, mas procura entendê-los como manifestações culturais e religiosas que, mesmo estando erradas, “só podem ser modificadas com o tempo e a persuasão, e nunca pela força”. Para ele, há uma mesma racionalidade natural em todos seres humanos, como há uma liberdade e uma igualdade originárias, “posição radicalmente contrária à teoria aristotélica da originária diferença entre os homens: uns destinados a comandar, outros destinados a serem comandados”. As desigualdades existem, certo; certas culturas e civilizações estão mais adiantadas do que outras, certo de novo. Era assim para Las Casas, e ele não tem dúvidas de que a cristandade a que pertencia anunciava o que seria o mundo de acordo com os desígnios do Criador. Mas, como lembra Tosi, ele subtrai “a relação espanhóis/indígenas do âmbito da relação patrão/escravo”, substituindo-a pela “relação pai/filho”, uma desigualdade do tipo existente na “oikos” grega, bem diferente da primeira, na medida em que a inferioridade dos “bárbaros” seria “temporária e não permanente”, da mesma maneira que a inferioridade dos filhos é apenas passageira, e a superioridade dos pais se exerce no sentido de educá-los para enfim acederem à “pólis” – no caso, a “Cidade de Deus”, para falar em termos agostinianos. 

Tudo isso parece soar insuportavelmente paternalista para nós outros modernos. Se, de um lado, o dominicano realizou, como diz Tosi, “uma verdadeira operação de etnologia comparada” (talvez “pela primeira vez nos tempos modernos”, como ainda observa) ao compreender as práticas “bárbaras” como legítimas no quadro mental de uma dada cultura, por outro, essa compreensão parece um jogo de cartas marcadas, já que, frente ao conflito de culturas, o seu desfecho já estaria dado de antemão. Concordo. Mas à condição de que estendamos análogo juízo ao nosso projeto iluminista dos direitos humanos, cuja divisa fundamental – “todos os homens [e mulheres, claro!] nascem livres e iguais” –  continua, como sabemos, um programa ainda não realizado, e nem por isso aceitamos outro desfecho que não seja a sua realização frente às várias barbáries que assolam os tempos sombrios que estamos vivendo. 

Voltando à controvérsia de Valladolid, o processo terminou inconcluso. Detalhe certamente destituído de maior importância. Desde o início, a conquista e a colonização das terras do Novo Mundo mobilizaram interesses poderosos que se impuseram pela força das armas e se tornaram um acontecimento histórico irreversível. O Novo Reino que os reis de Portugal e Espanha “tanto sublimaram”, como disse Camões, se fez à base de pilhagem, escravização e genocídio. Las Casas, que morreu octogenário, em 1566, não teria sido capaz de deter o curso das coisas num tribunal. Quem seria, aliás? Mas a concepção evangelizadora de Las Casas continuou fazendo seu caminho na América Latina, inspirando gerações de missionários que, mesmo diante do fato consumado da conquista, procuraram estabelecer maneira de evangelizar sem o uso da violência, de que as experiências das “missiones” jesuíticas em terras que hoje abrangem partes do Paraguai, Argentina e Brasil foram os exemplos mais conhecidos. Elas existiram em número expressivo entre os séculos XVII e XVIII, quando as últimas experiências foram destroçadas pelos interesses bem pouco espirituais dos conquistadores. Nossas “entradas e bandeiras”, por falar nisso, deram sua contribuição a essa “guerra justa”.

A história de um desses massacres está contada num filme de Roland Joffé, “A Missão”, uma superprodução de talhe hollywoodiano com um elenco estelar (Robert De Niro e Jeremy Irons à frente) que ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes em 1986. A premiação surpreendeu e gerou controvérsias pela simpatia que o filme não esconde em relação à maneira justamente “paternalista” com que o empreendimento jesuíta é tocado. Se nas “missiones”, de um lado, não havia exploração econômica (na “missão” mostrada no filme reina uma espécie de comunismo primitivo, como diria Marx), de outro elas também eram destruidoras da cultura autóctone. Os índios cristianizados – como a provar a tese de Las Casas sobre a comum racionalidade de todos os seres humanos – mostram-se capazes de dar um show de canto gregoriano, aprendem a tocar oboé e violino, e lêem as epístolas do apóstolo Paulo! Tudo isso embalado por uma das mais extraordinárias trilhas sonoras que Ennio Morricone compôs para o cinema. Quando ocorre o brutal massacre final, é difícil, mesmo para um decolonialista, não sentir empatia por aquela experiência…

Quando isso aconteceu, a Espanha já descia o plano inclinado que a levou à condição de país periférico numa Europa cujo centro dinâmico tinha se mudado para os países mais ao norte. O Iluminismo passou-lhe ao largo, e as idéias de Las Casas caíram praticamente no esquecimento, tanto quanto a “controvérsia de Valladolid”. Mas, bem antes que os iluministas franceses viessem a se ocupar do problema da escravidão – no caso, dos negros –, o livro de Tosi vem nos lembrar que a civilização ibérica foi, por quase dois séculos, a primeira e única a enfrentar a questão, a partir do extraordinário acontecimento histórico que foi o encontro entre o Velho e o Novo Mundo: “um tempo tão novo que não se parece com nenhum outro”, como disse Las Casas. 

O debate ocorrido entre 1550 e 1551 foi, para o autor do livro que aqui comento, “um momento crucial para a afirmação histórica dos direitos humanos”. Apesar disso, foi apenas no século XX que as idéias do dominicano foram resgatadas por aqui, primeiro pelos autores ligados à teologia da libertação, mais recentemente por aqueles ligados à perspectiva da decolonialidade. Falando por mim (mas creio que falo também por muita gente…), leitor de Rousseau e Voltaire, mas também de Marx, confesso que, mesmo já tendo ouvido falar no seu nome, Bartolomé de Las Casas era um autor praticamente desconhecido. Quando penso em pessoas como ele, um padre dominicano defendendo as teses que defendeu numa Espanha na época da contrarreforma, onde a Santa Inquisição não costumava brincar em serviço, costuma vir-me à lembrança um belo versículo dos Livro que provavelmente mais leu: “O espírito sopra onde quer” (Jo, 3:).