Kennedy e Kruschev.

 

A história comparada é um método que permite aprender lições do passado para analisar o presente, assumir posições e mesmo pensar o futuro. Mas deve ser utilizada com cuidado por conta de diferenças relevantes de contextos e de circunstâncias históricas. A invasão da Ucrânia pela Rússia tem levantado comparações do atual conflito na Europa com a crise dos mísseis de Cuba, em 1962, disputa entre as grandes potências que quase provocou uma guerra atômica. Como toda comparação entre eventos históricos, é necessário situar no tempo e no espaço, contextualizando as situações e distinguindo as circunstâncias para ajudar na análise e interpretação da realidade.

Entre a invasão da Ucrânia e a crise dos mísseis em Cuba existem muito mais diferenças de circunstâncias históricas que semelhanças, a começar pelo fato de o mundo viver, em 1962, o auge da guerra fria no equilíbrio do terror nuclear, com uma tensão e desconfiança aguda entre as duas grandes potências que dividiam e ameaçavam o planeta. O anticomunismo propagado na política norte-americana criava um ambiente de quase histeria na população e nos líderes políticos e o anti-imperialismo americano era difundido por todos os partidos comunistas do mundo, disputa que se manifestava em várias guerras quentes no terceiro mundo. Muito diferente do quadro atual. O anticomunismo e o medo da expansão comunista no mundo deixaram de ser parte da ideologia norte-americana (só a cabeça estúpida de Bolsonaro ainda vê a expansão do comunismo mundial) até porque a União Soviética dissolveu-se, e a integração econômica e comercial das nações criou um alto grau de interdependência e uma razoável pacificação entre as potências militares. A Europa está muito longe de ser inimiga da Rússia, a ponto de surgir como um alvo potencial de disparo de foguetes, ou invasão do território russo, e tem tido relações comerciais e diplomáticas cordiais e colaborativas. O capitalismo europeu e norte-americano quer mesmo é a ampliação das relações comerciais com a Rússia, a possibilidade de suprimento de petróleo e gás para alimentar suas economias, o que fica evidente com a construção de gasodutos entre a Rússia e a Alemanha para a injeção direta do gás natural na sua economia.  

Outra diferença significativa entre os dois eventos é o momento e a forma de intervenção dos antagonistas nos conflitos. Quando procurou interceptar navios soviéticos em direção de Cuba, os Estados Unidos haviam detectado que a União Soviética já tinha iniciado a implantação de misseis de longo alcance e estava transportando ogivas nucleares para o país do Caribe. Muito diferente do atual conflito, considerando que a Ucrânia demonstrou, em 2019, a intenção de filiação à OTAN, o que está longe de se efetivar. Diga-se de passagem, que esta intenção ucraniana apenas ocorreu depois da invasão da Criméia pela Rússia e o apoio e participação direta de trupas russas na rebelião separatista da região leste ucraniana (as mobilizações que derrubaram o presidente russófilo, em 2014, eram favoráveis à associação da Ucrânia à União Europeia). Não surpreende que, àquela altura, os líderes políticos ucranianos procurassem uma proteção militar, como a OTAN, com receio bastante realista de uma invasão do seu território.  

Além disso, ao contrário do que fez agora a Rússia, invasão pura e simples da Ucrânia, os EUA não invadiram Cuba, em 1962, para impedir a instalação de foguetes lança-misseis. Poderiam até ter aproveitado, maldosamente, as tensões e ameaças para justificar a invasão e a derrubada de Fidel, o que o próprio governo Kennedy tinha tentado um pouco antes, com o fiasco da invasão da Baia dos Porcos. Felizmente não o fizeram, porque poderia mesmo ter desencadeado uma guerra atômica, e foi mesmo o equilíbrio do terror que levou a uma negociação e ao acordo das duas potências. A Rússia tem motivos para estar incomodada com a presença da OTAN nos países fronteiriços, mas cometeu um grande equívoco se imaginava utilizar a invasão da Ucrânia como moeda de troca para desativar as estruturas militares da Europa. Dispunha ainda de meios diplomáticos para negociar uma nova arquitetura de segurança da Europa, mas sua motivação na guerra não era apenas geopolítica. E, ao contrário do que poderia desejar, um retrocesso da OTAN, alguns países que estavam fora da organização, como Finlândia e Noruega, têm motivos para procurar a sua proteção diante da evidente agressão russa. O mesmo que levou a Geórgia, país do Cáucaso que nem sequer é europeu, já em 2008, a solicitar a entrada na OTAN depois do conflito na Ossétia do Sul e na Abcásia (região estratégica no Mar Negro), quando a Rússia apoiou um movimento separatista com tropas e ataques aéreos contra as forças georgianas. 

Por outro lado, Putin não esconde suas aspirações expansionistas em parte do antigo império russo e, especialmente, em relação à Ucrânia. Em discursos e artigos recentes, o presidente russo vem manifestando claramente as pretensões de anexação da Ucrânia. Quando ele diz que “a Ucrânia não existe como país”, que a Ucrânia “foi uma invenção de Lênin” e, além do mais, que ela é “parte integral de nossa história, cultura, espaço espiritual” (palavras dele), ele está declarando que o país deveria voltar aos braços de Moscou. Num sonho atávico da Grande Rússia, Putin critica líderes soviéticos, principalmente Lenin, quem teria, no início da União Soviética, minado a hegemonia russa, porque levou a sério a ideia de autonomia dos vários povos do império russo. Lendo e ouvindo as opiniões de Putin, os ucranianos tinham motivos suficientes para temer a invasão e anexação da “invenção de Lênin” à Grande Rússia de Putin, mesmo antes da tomada da Criméia e dos movimentos separatistas a leste. De acordo com Slavoj Zizek, em artigo recente, Stalin continua sendo celebrado na Rússia, não como comunista, mas como alguém que reconstruiu a grandeza da Rússia após anos de “desvio” antipatriótico de Lenin. 

Por isso, o conflito dos mísseis de Cuba de 1962 não ajuda a compreender a invasão da Ucrânia pela Rússia e, ao contrário, termina servindo para amenizar e até mesmo justificar a agressão do governo Putin. Condenar a agressão da Rússia nas atuais circunstâncias não pode ser interpretado como alguma forma de clemência da longa história de violência dos imperialismos, particularmente dos Estados Unidos, sistematicamente agindo como uma potência agressiva e intervencionista em vários países, tão desrespeitosa da autodeterminação dos povos quanto está sendo agora a Rússia (Vietnã e Iraque são os maiores exemplos). O que não é aceitável é, ao contrário, a legitimação da atual invasão da Ucrânia através da lembrança dos atentados praticados pelo imperialismo norte-americano. Sem esquecer as violentas intervenções militares do imperialismo da própria Rússia, desde o império tzarista, passando pela União Soviética, e emergindo agora com o nacionalismo de Putin. O fato de não ter anjo no jogo de poder internacional não permite aceitar e legitimar as agressões de uma potência porque a história está repleta de violência. Cada caso deve ser analisado e criticado, sem dubiedades, sempre que constitua uma ameaça à paz internacional e um desrespeito à autodeterminação dos povos, precisamente o que está fazendo agora a Rússia com clara inspiração no passado imperialista russo.