Diversos analistas têm apontado que o acúmulo de erros no primeiro mês do governo de Gabriel Boric, no Chile, não é somente resultado da falta de traquejo de uma nova geração que chegou ao poder, com pouca experiência na gestão pública, mas de enfoques ideológicos que induzem ao voluntarismo e à autossuficiência a respeito da sua capacidade de influenciar e mudar a realidade.

Ao contrário das expectativas positivas em relação ao governo Boric, por inúmeras inovações que promoveu na montagem da equipe, nunca se viu, desde o retorno da democracia, uma erosão tão rápida no apoio a um governo recém-instalado. Praticamente, é um governo sem “lua de mel”. E tal tendência pode se acentuar, pois as circunstâncias políticas e econômicas, somadas ao foco de instabilidade da Convenção Constituinte, criam um quadro muito complexo e desafiador. 

De acordo com o sociólogo Eugenio Tironi, a Convenção Constituinte, que galvanizava expectativas positivas em torno ao feminismo, à valorização da ecologia, aos povos originários e a uma democracia enraizada no território, parece não se atentar para os riscos de autoritarismo que pairam sobre nosso tempo. Para ele, a reflexão da Convenção ficou presa a um mundo que se foi, o mundo de outubro 2019, das grandes manifestações, da esperança de refundar o país. Agora, segundo Tironi, “estamos no mundo do hard power, da guerra da Rússia na Ucrânia”. Por isso, ele sugere aos constituintes que “retirem da sua biblioteca Schmitt e sua noção de inimigo e retornem a Gramsci e sua noção de hegemonia como conquista da alma da cidadania ao invés de buscar rivais para derrotá-los” [1].

Carlos Hunneus, prestigioso jurista e analista político, em entrevista recente, manifesta um juízo severo ao andamento da Constituinte. Para ele, a maioria de 90 representantes independentes, de 155, que não respondem a ninguém, a nenhum partido, é algo grave. E, conclui: além dessa maioria de independentes, a “combinação de feminismo ou paritarismo, de plurinacionalismo ou complexo de culpa com os povos originários (…), mina as bases de qualquer trabalho constitucional sério” [2]. 

Objetivamente, daquilo que já se aprovou na Convenção, há inúmeros aspectos institucionais preocupantes, tais como: 1. a supressão do Senado como casa revisora, transformado em “Câmara de Regiões”; 2. o unicameralismo de uma Câmara “plurinacional”, sem o contrapeso do Senado ou mesmo do Presidente da República; 3. a indefinição quanto à legislação eleitoral, postergada para ser aprovada pelo Congresso; 4. a fragmentação e fragilização do sistema de justiça e de controle.

O que ocorre na Convenção problematiza a legitimidade política de Boric, porque não há como desvincular os setores sociais e políticos que lideram a Convenção daqueles que apoiam o novo presidente. Além disso, analistas como Sergio Muñoz asseveram que o conjunto de forças que dá suporte a Boric não possui “o sentido de Estado” que a situação histórica que o levou ao poder exigia [3]. Os erros do governo nos primeiros 30 dias fizeram com que tensões já existentes, como as advindas de pressões sociais e de gênero, a violência aberta no Sul, que não se consegue equacionar, a inflação, as vacilações do governo quanto às retiradas de valores alocados para a aposentadoria dos chilenos, além da resiliência da pandemia, geraram um stress cumulativo que afetou a popularidade do presidente.

De toda forma, Boric parece ter conseguido evitar um fracasso precoce, embora a luz amarela tenha sido acesa: as pesquisas apontam que Boric, em um mês, perdeu mais de 20% do apoio que tinha ao assumir o governo. É bastante, se comparado a Piñera e Bachelet, no mesmo período. Na montagem do governo, Boric demonstrou realismo ao escolher Mario Marcel, um economista socialdemocrata, para a pasta da Fazenda. Foi uma aposta no equilíbrio macroeconômico e no combate à inflação. Mas os fatos demonstram que somente isso não basta.

Para Sergio Muñoz, Boric vacila em relação à “dinâmica autodestrutiva da Convenção”. De início, manifestava apoio incondicional em relação ao que quer que saia dela. Mais recentemente, relativizou essa posição afirmando: “eu quero que o texto e o plebiscito sejam um ponto de encontro e não de polarização”. Enquanto isso, as pesquisas têm mostrado que a opção “Rechaço” está à frente da opção “Aprovo”. Se optar pelo realismo, a única coisa que pode fazer é distanciar-se visando garantir a legitimidade do seu mandato de quatro anos.

Boric precisa fazer todo o possível para que, caso vença a opção “Rechaço” no “plebiscito de saída” de 04 de setembro, isso não seja interpretado como uma condenação ao seu governo [4]. O problema é que seus principais apoios, a Frente Ampla, o PC e os socialistas, têm agido na Convenção também inebriados pela ideia de refundação. Se o governo se engajar na campanha pela aprovação, sem respeitar as normas legais e, sobretudo, sem considerar os controles sobre o uso dos recursos públicos, correrá um risco imenso, caso a opção “Rechaço” vença.

Se, para não naufragar, Boric adotar uma estratégia abertamente socialdemocrata, não terá como não ajustar o gabinete, além de deixar para trás, definitivamente, a retórica da agitação antagonística que o caracterizou como deputado e, antes disso, como líder estudantil. Deverá apoiar firmemente o Estado de Direito e não hesitar em adotar medidas para proteger a população que impliquem o uso da força legítima do Estado democrático. Pode ser que sua coalizão de governo não resista a uma virada tão acentuada. É o dilema de Allende diante de uma Unidade Popular radicalizada que emerge novamente, com atores distintos: como reagirá o PC se Boric impuser um estilo mais moderado? Não é despropositado imaginar que os comunistas revejam sua posição e passem a estabelecer uma estratégia de esquerda disruptiva [5].

Tudo parece indicar que até o “plebiscito de saída” será difícil evitar a polarização entre estabilidade democrática e ímpeto refundacional. Mantida a estabilidade, a vitória de qualquer uma das opções será por pequena diferença, ao contrário de todas as expectativas, desde a instalação da Convenção Constituinte. 

Se vence a opção “Aprovo”, validando uma Constituição sem capacidade de blindar a nova institucionalidade democrática, poderá advir, mais à frente, uma escalada iliberal capaz de reverter o processo democratizador que o Chile viveu nos últimos anos, incluindo o período da Concertación (1990-2010). Para evitar isso, o atual Congresso deverá colocar a nova Constituição em pé por meio de um conjunto de leis que soldem o que ficou em aberto. Se vence a opção “Rechaço”, haverá que se ter imaginação suficiente para propor ao Congresso que elabore, o mais rápido possível, um texto que vá novamente a plebiscito e impeça instabilidades que possam levar a uma ameaça autoritária aberta.

O “plebiscito de entrada” foi vivido como expressão da esperança por novos direitos, por uma expectativa de paz e avanço democrático; o “plebiscito de saída” poderá colocar o Chile à beira do precipício e com poucas margens de manobra para uma saída virtuosa. 

 

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[1] Eugenio Tironi. “La Convención no solo ha hecho oídos sordos sino que ha hecho sorna de algunas de las críticas de Lagos y Boric”. Cf. https://www.ex-ante.cl/eugenio-tironi-la-convencion-no-solo-ha-hecho-oidos-sordos-sino-que-ha-hecho-sorna-de-algunas-de-las-criticas-de-lagos-y-boric/ 

[2] Carlos Huneeus. “La Constitución se juega en las próximas semanas”, cf. https://www.eldinamo.cl/politica/Carlos-Huneeus-profesor-de-Derecho-Constitucional-La-Constitucion-se-juega-en-las-proximas-semanas-20220414-0003.html .

[3] Sergio Muñoz Riveros. “Las preocupantes señales del primer mes de Gobierno”. Cf. https://www.ex-ante.cl/las-preocupantes-senales-del-primer-mes-del-gobierno-por-sergio-munoz-riveros/ .

[4] Em seu relato romantizado do que ocorre no Chile desde o “estallido”, a eleição de Gabriel Boric e a instauração da Convenção Constituinte, Fernando Barros e Silva projeta algo bastante distinto do que afirmamos aqui. Em suas palavras: “Existe, é claro, a possibilidade de a nova Constituição ser rejeitada pelos chilenos. Seria a ruína para o governo Boric. Um governo que na realidade teve início antes de ser eleito, que nasceu do estallido e do processo constituinte que lhe sucedeu (sic). E que corre o risco de acabar em poucos meses se a mudança constitucional naufragar”. Fernando Barros e Silva, “De volta para o futuro – a experiência radicalmente nova do Chile”, Piauí, ed. 187, abril de 2022.

[5] Sergio Muñoz Riveros. “Las preocupantes señales del primer mes de Gobierno”. Ver a referência na nota 3.