É conhecida a frase do poeta Charles Baudelaire segundo a qual a maior esperteza do diabo é nos fazer crer que ele não existe. Por sua vez, Guimarães Rosa glosou o poeta no “Grande Sertão: veredas” ao dizer que quando a gente pensa que ele, o diabo, não existe, aí é que ele toma conta de tudo.
Pois bem, a conjuntura política, com licença dos tementes a Deus, ou seja, todos nós, está nas mãos do diabo. Como assim “nas mãos do diabo”? O Iago que habita o Alvorada e finge que trabalha no Palácio do Planalto, emparedado pela melhor opinião pública do País, isto é, aquela que ama a democracia e se horroriza com os fascistas, esse Iago, como excelente Iago, é um mestre das suspeições continuadas. Otelo é todo o Brasil. Nem Shakespeare, em toda a sua glória, imaginaria tal situação. E Desdêmona não é outra senão a democracia. Não se passa um dia sem que esse demoníaco Iago não lance uma suspeição sobre o processo eleitoral. Iago não é um poeta, mas sabe do poder das palavras, sabe que pouco a pouco elas se infiltram nas consciências e cumprem o seu sequestro semântico. O fim, os que leram a tragédia de Shakespeare sabem bem como é…
Um golpe está a caminho? Sim, com o consentimento de parte da população. Essa parte, escusado dizer, é “sebastianista”, deseja uma salvação a qualquer custo, afinal é de uma “salvação” que se trata. Nada mau, vale apostar todas as fichas, malgrado o sofrimento da Constituição. Ora, a Constituição! Esta é só um livrinho! E quem está aí para livrinhos? Um gaiato, pensando no caso do bandido Daniel Silveira, diria como São Paulo: “Não estamos debaixo da lei, mas debaixo da graça!”. É como, dias atrás, um pastor febril resumiu didaticamente: “O que é um juiz diante de Deus?”. É o caso de se dizer: contra argumentos, não há fatos.
Que venha o golpe tão desejado. Enfim, a ilusão bem entranhada pode fazer milagres. Mas golpe para quê? Golpe para quem e contra quem? Amigos cara-pálidas, tingi vossas faces com a tinta da verdade! Desculpai-me, a História aponta para desilusões: tortura, desigualdade, corrupção, arbítrio, pobreza… Lugar de militares é nos quartéis ou nos campos de batalha. Consultai a memória. Lembrai-vos do quanto foi dura e longa a luta por democracia. Lembrai-vos das polaridades cretinas que fizeram pouco da vossa crença! Será tão difícil assim nos livrarmos de polaridades? Será que nunca nos livraremos das pessoas que só se preocupam com elas próprias? “O individualismo é a ferrugem da democracia”, escreveu Tocqueville, e escreveu bem.
Então, quereis viver numa república golpeada e, pior, sob um tirano? Um tirano cujo conceito de “liberdade” só pode ser unicamente a seu favor ou a favor de seus sequazes. Será que preciso vos lembrar Cervantes? Pro autor de “Dom Quixote”, a liberdade é o bem maior… Tudo isso é um truque, apenas mais um truque.
Não nasci ontem. Diz o povo que “O diabo sabe das coisas não é por ser diabo, mas por ser velho”. É o caso. De resto, o diabo não é tão feio quanto se pinta. Talvez seja outro truque. O fato é que há poderosos interesses em jogo. Sempre os há. Mas não quero acreditar que um grande país tenha entrado numa crise cognitiva, queimando sua Constituição nas mãos torturadoras do capeta.
Como quer que seja, o diabo, ou o perverso Iago, vai queimando, onde pode, a nossa frágil democracia. Com golpe ou sem golpe, a democracia vai mudando de pele e vai ficando irreconhecível. E isso à custa de nobres almas que acreditam numa pureza milenarista e temem fantasmas impossíveis, todos bem-intencionados espíritos, sempre cheios de fé e de esperança, que continuam quebrando ovos, sujando as mãos, sem nenhuma omelete à vista, como diria Isaiah Berlin.
Parabéns. É a realidade do golpe militar em marcha de forma erodita. A “Elite do Atraso” fomenta. O “novo rico” do agronegócio faz a torcida organizada. A cultura escravocrata é a ideologia.
Obrigado, amigo Sérgio.
É isso.
Abraço
Brilhante artigo. Pela riqueza verbal, dos conceitos e das citações.
Não imagino que possamos ser mais eloquentes.
Minhas homenagens!
Caro Mestre Clemente,
Suas palavras são alegria e estímulo.
Grato abraço,
Paulo Gustavo