Balzac

 

Há dez anos, a Editora Globo relançava toda “A comédia humana”, calcada na sua edição de 1947, que fora coordenada por Paulo Rónai. Balzac voltava assim em grande estilo, como de fato merece. Afinal, poucos autores chegaram como ele a um reconhecimento mundial e, poucos como ele, têm uma marcante comunicabilidade. 

Balzac, como já foi notado, tem uma incrível força vital, e sua ambição marcha de par com seu gigantesco talento. Ao lermos sua copiosa ficção, temos a impressão de estarmos lendo um predestinado, possuído por uma imensa capacidade fabuladora. Ele nos faz ver tão bem a realidade ficcional porque esta, em algum momento, parece que se desenrolou ante seus olhos. Ele nos dá a ver porque, antes, a viu com a clarividência dos que são dotados pela própria natureza. Não por acaso, é extensa a lista de filmes inspirados em seus romances. No momento, por exemplo, as salas nacionais exibem “Ilusões Perdidas”, filme (aliás, um imperdível filmaço) dirigido por Xavier Giannoli, inspirado no romance homônimo, que, para muitos críticos literários, é a sua obra-prima.

Taine, que pontificava na crítica de meados do século XIX francês, foi, segundo Paulo Rónai, um dos primeiros grandes nomes a reconhecer a dimensão do escritor. Apesar dos senões que aponta, muitos dos quais revelando apenas a convencional sensibilidade do seu tempo, Taine sobe o tom para exaltar o romancista. A fecundidade de Balzac o deslumbra; para ele, o autor de “O pai Goriot” “[…] escreveu a triunfante epopeia da paixão”. Pergunta-se Taine que forças conduzem o mundo descrito pelo escritor. E responde: “Para o naturalista Balzac, são as paixões e o interesse. A polidez os enfeita, a hipocrisia os mascara, a tolice os encobre sob belos nomes; mas, no fundo, em dez ações, nove são egoístas […] Balzac considera a sociedade como um conflito de egoísmos, em que a força, orientada pela manha, triunfa, em que a paixão trespassa surda e violentamente os diques que se lhe opõem, onde a moral aceita consiste no respeito aparente das conveniências e da lei”. Não podemos dizer melhor. Nem podemos, infelizmente, dizer que vivemos num mundo diferente do de Balzac…

A ambição literária do romancista materializou-se, como se sabe, em sua “Comédia Humana”, uma emulação da própria vida social que tomou a forma de 88 obras ficcionais (divididas em “estudos de costumes”, “estudos analíticos” e “estudos filosóficos”), as quais, para garantir, com mais êxito, aquela emulação, estão povoadas de personagens que circulam por vários livros e que, por isso mesmo, também podem ser vistas de vários ângulos em suas atitudes habituais. Esse “insight” tão caro à confecção e à unidade de “A comédia humana” não lhe veio nos seus primeiros anos de escritor, mas em sua maturidade. 

A visão popular que se tem de Balzac, como costuma acontecer, é um tanto enganadora ou insuficiente. O nome do romancista, para essa visão, parece estar limitado à sua análise social e ao seu realismo. Se assim fosse, teríamos uma espécie de Balzac cru ou talvez insosso, sem embargo de vários enredos brilhantes, sem embargo de seu amplo conhecimento da história e das tradições francesas. Quem disse que Balzac não tem poesia? Quem disse que é falto de imagens e metáforas poderosas? Quase que não há página sem elas! Como, sem poesia, teria entrado tão bem no coração de homens e mulheres que tanto nos dizem dos costumes do Oitocentos?

Além da incrustação poética que aqui e ali dá uma dimensão exclusiva à sua escritura, Balzac, de par com esse poeta que o habita, é igualmente senhor de uma poderosa reflexão. Tal como o poeta, esse pensador, longe de ser um esnobe em sua ficção, é mais uma voz que constitui sua polifonia.  A exemplo dos maiores, ele pensa, reflete, ironiza, e isso lhe confere um sabor transcendente, confere a seus livros uma eternidade que os exime de ser puramente datados. Tinha o que dizer e o que refletir, e o fez genialmente.

Finalmente, o enciclopedismo de Balzac não é menos fascinante nem menos presente em sua obra, como bem nos chama a atenção a ensaísta e tradutora Rosa Freire d’Aguiar em sua apresentação do “Tratado da vida elegante”: “Há em ‘A comédia humana’ uma profusão de Balzacs. Ele se faz geógrafo ao descrever sua Touraine natal, os bairros de Paris, a Bretanha ou a Rússia; faz-se historiador ao dissertar sobre a Revolução Francesa, Luís XI ou a Restauração; faz-se filósofo místico ao arriscar-se nos assuntos do sagrado; faz-se, sobretudo, sociólogo ou antropólogo ‘avant la lettre’ […] imortalizou na literatura tudo o que era revelador da sociedade francesa, todas as imagens que ela projetava de si mesma”.

Eis, em duas modestas laudas, por que Honoré de Balzac, de quem há pouco, em maio passado, transcorreram os 223 anos de nascimento, continua sendo um autor incontornável.