Não tenho competência para falar da obra de Caetano Veloso, mas vou mostrar aqui notícia que saiu sobre ele na The New Yorker, um semanário de muitos temas e quase centenário. Estou até desconfiada que The New Yorker, com seu ecletismo de reportagem, comentário político e cultural, ficção, poesia e humor, é o ideal de existência que a “Será?” persegue. Em todo caso, 10 páginas de The New Yorker, um artigo que é minibiografia e só louvores, não é p’ra qualquer um 1. Louvores hiperbólicos, junto de uma descrição sóbria e carinhosa de vários momentos que marcaram a vida de Caetano, em que surge como gênio precoce. 

As comemorações pelo aniversário de 80 anos de Caetano Veloso foram amplas, e ao muito que se disse não saberia o que acrescentar. Ainda mais depois que Soninha Francine reclamou dos clichês que inundaram a imprensa no dia do aniversário (domingo 7 de agosto), e indagou por que jornalistas não perguntaram “Fala uma música do Caetano e o que ela significou em sua vida”. Pois é, até dizer que Caetano é filho de Dona Canô e de Santo Amaro da Purificação virou clichê. E nem sei se saberia responder tal pergunta de um eventual jornalista. 

Significado para minha vida? Seria demagogia escancarada dizer, a essa altura, que senti como exílio minha própria vida no exterior, apesar de que ela começou por causa do AI5 e do AC35 e continuou porque o Itamaraty cancelou meu passaporte em 1974. Achei uma injustiça me tirarem o passaporte brasileiro, mas não cheguei a sofrer. Assim, não enxergo as canções do exílio de Caetano com algum significado para mim como indivíduo. Seu significado é histórico. Pode até ser que alguma das inúmeras canções de Caetano Veloso possa ter algum significado pessoal que seja exclusivamente meu, mas não investiguei.  

O que mais sinto ao ouvir alguma canção de Caetano é surpresa. Surpresa com seus “achados” e com o que ele inventou e inventa, tanto nos sons que encontra e rearranja quanto nas palavras, e nas combinações originais em que reúne as palavras. E surpresa com o que ele oberva e transforma em canção. Como quando notou uma notícia no jornal, “Enzo Gabriel foi o nome mais escolhido para bebês que nasceram no Brasil em 2018”, e fez uma canção suave, quase canção de ninar, uma crônica de delicada ironia, que avisa no final: 

“Sei que a luz é sutil, mas já verás o que é nasceres no Brasil.” 

Não vou falar da música, nem saberia, e possivelmente só ouvi, atenta, talvez dez por cento das mais de 600 músicas que já gravou, cuja diversidade é mais outra surpresa. Além de que Caetano Veloso não é só música, é um uso e um exercício muito particular da língua portuguesa/brasileira, que exigiria examinar o que já se publicou de livros com os textos de suas canções. Estou curiosa sobre o último, que acaba de sair, “Letras”, com todas as canções escritas por Caetano Veloso, compiladas por Eucanaã Ferraz. Pois surpresas Caetano Veloso não oferece apenas com suas músicas. 

Seria até monótono listar aqui todos os prêmios e comendas que recebeu, desde Grammys em diferentes categorias até Comendador da Ordem do Mérito Cultural em Portugal ou Professor Honorário da Universidade Nacional de Rosario, Argentina. O álbum “Meu Coco” recebeu o Grammy Latino de Gravação do Ano de 2021. Destaco apenas a sua última conquista acadêmica, que não é explicitamente pela música, é mais por “palavra cantada”: em abril deste ano, a Universidade de Salamanca, a mais antiga da Espanha, aprovou para Caetano Veloso o título de “doutor honoris causa”. Não é simples homenagem a uma estrela internacional. A candidatura do brasileiro foi apresentada pela Faculdade de Filologia e o Departamento de Filologia Moderna da Universidade de Salamanca, e foi aprovada no Claustro de Doutores por uma votação de 61 a favor e 2 contra. Nem sei se isso é mais uma surpresa, mas no caso de Caetano Veloso parece não fazer qualquer sentido tratar em separado cultura “pop”, popular, ou erudita. 

De onde vem a força tão gentil de Caetano Veloso?  O jornalista Jonathan Blitzer, lá no artigo do “The New Yorker” tentou mostrar. Acompanhou Caetano por algum tempo, aqui no Brasil, e conta o que viu. Começa por descrever uma roda de samba em uma noite quente de dezembro no Rio, no apartamento de Caetano, as luzes da orla se viam dos janelões abertos. Descreve Caetano, seus cabelos grisalhos em 2021, e lembra que eram encaracolados e compridos quando foi preso pela ditadura militar em 1968 e julgado “desvirilizante”, cortaram-lhe os cabelos que estavam há dois anos sem cortar. Blitzer põe fotos, do grisalho e dos negros caracóis. No relato, a produção de música por Caetano aparece sempre como trabalho coletivo, com múltiplos parceiros, agora também os filhos, e amigos conversando. Paula Lavigne, mulher e “manager”, ao falar da admiração que Caetano provoca, é que usou a expressão “efeito Caetano” que terminou título do artigo. Conta dos músicos estrangeiros que foram atraídos e contribuíram para essa produção coletiva como influência, parceiros ou apenas interlocutores. Conta aos nova-iorquinos mais até do que a gente soube por aqui: o vasto apartamento foi refúgio durante a Covid, tem estúdio de gravação e sala de exercício, e foi lá que gravou “Meu Coco”, e aí resolveram ficar por lá mesmo. 

A seção seguinte é a infância, primeiro em Santo Amaro, depois em Salvador; como descobriu a Bossa Nova e o primeiro encontro bem estranho com João Gilberto, que se tornaria sua maior inspiração, sua “religião”. Como topou com Gilberto Gil na rua, e a unidade dos baianos, em Salvador, no Rio, em São Paulo: Veloso, Gilberto Gil, Maria Betânia, Gal Costa. Como casou com Dedê Gadelha, sua primeira mulher. Como Betânia teve sucesso antes, no show “Opinião”, no Rio. Como, em julho de 1967, em plena ditadura, houve em São Paulo uma marcha, com bandeira branca de “Frente Única pela Música Popular Brasileira”, e os manifestantes gritavam “abaixo a guitarra elétrica”. Veloso, com Nara Leão, assistiram de uma janela de hotel, em desgosto. 

Em seguida vêm os comentários sobre o primeiro álbum, com “Meu Coração Vagabundo”, o show em São Paulo em outubro de 1967 em que Caetano cantou “Alegria, Alegria”, os aplausos abafando as vaias iniciais, o movimento Tropicália e as reações contrárias de estudantes politicamente à esquerda. Caetano reagiu, estava escrevendo canções como “É proibido proibir” pensando nesse tipo de vaias que recebia de parte do público que se escandalizava. Não sabia que os militares reuniam sobre ele um dossiê, foi preso duas semanas depois de publicado o AI5. The New Yorker descreve a passagem pela prisão em 1969 e a saída de Veloso e Gil para Londres, onde morou com Dedê numa casa em Chelsea. No início de 1971, Betânia contatou militares para garantir que o irmão viesse à Bahia para o aniversário de casamento dos pais, mas ao chegar ao aeroporto no Rio militares a paisana o levaram a um apartamento e fizeram novas ameaças. Voltou a Londres, agora seu exílio lhe parecia indefinido, e aprendeu a gostar de Londres. É engraçado como conta a Blitzer que mais tarde no mesmo ano volta ao Brasil, por pura mágica de João Gilberto. 

Só coloco a grandes pinceladas o que está no artigo de Blitzer, cheio de detalhes preciosos. Há muito mais sobre “história de música” de Caetano, como vem a inspiração, de onde, os temas, como fica incubada, como se fazem os arranjos (e a ajuda de outros, em especial Jaques Morelenbaum), como trabalha, como ouve outros músicos, do Brasil inteiro e do mundo, suas relações com músicos do mundo inteiro, sua participação em filmes, como é tocar sob a direção de Caetano. E há também muito mais sobre a família, os filhos músicos e como aprenderam, a história do seu casamento com Paula Lavigne, separação por 11 anos e a volta, como tem sido integrar os filhos músicos em shows conjuntos. O grau de acesso de Spitzer à intimidade do clã Veloso é surpresa também. 

Na parte final do artigo Spitzer procura apresentar as ideias políticas de Caetano Veloso, mas isso está na trajetória toda, é preciso algum cuidado ao decantar. Spitzer apresenta sua própria narrativa do que aconteceu no Brasil a partir da campanha eleitoral de 2018 e até 2021, a visão de um jornalista bem-informado que denuncia Donald Trump e Steve Bannon e constata que assessores de Trump fizeram várias visitas ao Rio para ajudar a construir uma rede digital para interligar a extrema-direita. Diz que Trump e Bolsonaro são aliados e diz que, no primeiro ano da pandemia, Bolsonaro “menosprezou protocolos de saúde pública e boicotou um contrato para garantir doses da vacina da Pfizer para os brasileiros” (p.56). Spitzer tenta um contraste, ao contar que nesse mesmo ano, Veloso participou de um documentário em Nova York em que narra a história completa da sua prisão em 1968 e lê trechos do seu arquivo da polícia. 

Quem sabe a força de Caetano Veloso venha mais que tudo do que transparece quando ele relembrou recentemente sua estada londrina na passagem dos 1960s para os 1970s: “Me comove que tantos jovens cultuem Transa, o disco que gravamos em quatro dias num estúdio em Londres. Ralph Mace tocou a produção. Era o segundo que eu fazia em Londres e tinha intenção de lançá-lo lá e no ‘mundo’. Mas como o louco Brasil deu sinais de eu podia voltar para cá, eu, que sou louco por esse louco, nem tive dúvidas de que escolhia vir.” (O Estado de S.Paulo, 22/05/2022, p. C3) Amor ao Brasil, em Caetano Veloso, não tem nada, nadinha, de clichê. E nada de jingoismo. 

1 Agradeço à querida amiga e crítica de cinema Judith M.Kass a lembrança de me enviar o artigo: Jonathan Blitzer, “The Caetano EffectHow Caetano Veloso revolutionized Brazil’s national sound and spirit”, The New YorkerFebruary 14 & 21, 2022, pp48-57.