Chico de Assis

“Por que o senhor atirou em mim?” – mortalmente ferido, o adolescente Douglas Rodrigues, de 17 anos, só teve forças para formular a dramática pergunta que deveria agora estar martelando a consciência das autoridades, em todos os níveis de governo (federal, estadual, municipal).

Mas talvez seja demais esperar uma resposta honesta de autoridades envolvidas em suas engrenagens eleitorais, com seu sem mundo de avaliações midiáticas e orientações de marketing, cujo conteúdo tem a ver com tudo, menos com o que o comum dos mortais chama consciência.

A presidente Dilma, dois dias depois do crime, encaminhou via Twitter algumas palavras de preocupação e solidariedade – muito menos enfáticas, diga-se – do que as pronunciadas, quando da agressão do cel. Reynaldo Rossi, por manifestantes em luta na semana passada.

Do histriônico governador paulista, posso estar com má-vontade em relação a ele, mas não encontrei nenhum sinal de qualquer providência concreta, no sentido de apurar responsabilidades e punir possíveis responsáveis (talvez o governador tenha emitido uma daquelas hipócritas notas lamentando os fatos – de resto, dispensável).

Dos comandos militares, aí seria ingenuidade – beirando a idiotice – esperar qualquer coisa mais que tentativas solertes de acobertamento dos fatos, através das tradicionais fantasiosas versões – os mesmos contos de carochinha contados no transcurso do caso Amarildo, no Rio de Janeiro, e de centenas de outros constantes da atrabiliária história das policias militares deste pais.

Das entidades representativas dos direitos humanos – cuja ferocidade na repulsa às agressões sofridas pelo coronel da polícia paulista, confesso que me deixou absolutamente perplexo, pelo unilateralismo implícito, pela estupidez política contida na acusação de se tratar de uma agressão fascista, pela despreocupação completa de averiguar o contexto em que a agressão se teria dado – há uma inércia preocupante, reveladora de um temor inexplicável, no sentido de pedir o encaminhamento de providências que levem a algo mais rigoroso quanto å aplicação imediata da lei.

Enfim, dos atores protagonistas dos acontecimentos do último fim de semana e da última segunda-feira na maior capital do país, restou apenas o povo, mesmo circunscrevendo o conceito a pequenas parcelas de moradores da pequena comunidade diretamente atingida pela nefasta ação policial. E ele reagiu à altura. Com a comovente combatividade dos que ainda preservam a dignidade e os princípios da solidariedade humana, apesar do massacre diário dos seus mais elementares direitos.

Os moradores afirmam que, durante os protestos, policiais chegavam “atirando sem dó”.

“Foi muito tiro. Podia ter matado mais alguém. Estavam atirando pra matar mesmo” – disse um adolescente morador da área.

Nesse clima, é muito difícil que algum ouvido esteja aberto para ouvir a pergunta feita por Douglas, à beira da morte. “Por que o senhor atirou em mim?” Ela continuará ecoando até o próximo confronto. Até a próxima bala. Até que se compreenda que tem total razão a conclusão de um artigo de Renato Roval, numa secção de Carta Maior:

“0s jovens de periferia não querem mais ver irmãos, parentes, amigos, colegas ou apenas conhecidos, serem enterrados porque cometeram o crime de terem nascido, em geral negros, e viverem nas periferias. Eles estão dizendo chega.”

Sem alarme, a situação criada a partir do ocorrido em São Paulo no fim dessa última semana (associada aos sinais visíveis de exaustão social verificados no Rio de Janeiro, quando da luta dos professores entrelaçada a outras lutas), tem que levar a uma reflexão que nos retire do primarismo de algumas análises, expostas a rodo na mídia ou em blogs pertencentes a antigos militantes da luta revolucionária contra a ditadura, absolutamente aturdidos com a perda de comando nas ruas. De um lado, elas incidem na conclusão única de pedir “mais e mais repressão”. De outro, na estupidez política de considerar fascista a explosão de uma revolta que toma cada vez mais a forma de uma revolta generalizada, vinda de uma população, cujos direitos mais elementares são criminosa e diuturnamente esmagados.

O que ocorreu em São Paulo na última segunda–feira não teve nada a ver com a atuação dos black-blocs, que ganhou espaço e expressão, a partir das grandes manifestações de junho. Os que pensaram que elas se haviam esgotado, no refluxo natural das massas que haviam impulsionado tais manifestações (e experimentaram um sentimento de alívio com isso, voltando a dormir tranquilos e achando que tudo voltara a ser como antes), tiveram que acordar sobressaltados. A reviravolta que os acontecimentos produziam os obrigava a procurar fórmulas onde pudessem enquadrar seus ultrapassados conceitos, para explicar o ressurgimento do mesmo espírito de junho, só que em pedaços menores, ora agregados às lutas de categorias profissionais (como a dos professores e dos petroleiros, que ganharam novo vigor), ora às bandeiras difusas por dignidade e melhor qualidade de vida (que as jornadas de junho trouxeram à tona, a meu ver, de modo definitivo). O fenômeno dos black–blocs – embora antigo no mundo – é relativamente novo no Brasil e merece algumas ponderações.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos remete o nascimento desses grupos aos anos 70, na Alemanha, na luta contra a energia nuclear. Na década de 80, adquiriram uma ideologia autonomista, a partir da qual foram plasmando a ideia que os sustenta até hoje: “temos que criar na sociedade espaços de autonomia que não dependem do capitalismo e que, portanto, podem oferecer outra maneira de viver”. Eles praticam ações anticapitalistas em sua origem e se recusam a ser vistos sequer como movimentos (dizem–se apenas uma tática de luta). Pode–se então chamá–los de anarquistas, radicais, delirantes, porra–loucas. Mas ver qualquer relação da atuação deles no Brasil, com uma possível articulação, para desestabilizar ou mesmo derrubar o atual governo petista, ou fazer alguma associação dessa atuação com movimentos de direita ocorridos no pré–64 do Brasil ou no pré 73 do Chile (derrubada de Allende) é de um primarismo grotesco. Pedro Albuquerque, ex–guerrilheiro do Araguaia, ex-preso político, ex–exilado no Chile e no Canadá, sociólogo, advogado, professor da UNIFOR e doutorando em Direito Criminal, na Universidade de Otawa–CA, vem em meu socorro, para uma conclusão lapidar:

“Se nós, que participamos de tantas lutas, chamarmos os “blocks”de vândalos é porque nos deixamos dominar pela preguiça de pensar. Volto a dizer: a coisa é mais complexa, bem mais complexa. Os blocks são um forte sintoma do que ainda não captamos da extensão do mal-estar social”.

Mas talvez não seja correto nos resumir ao exame de um único fenômeno – embora ele tenha sido de fato o marco diferenciador desse último período – na tentativa de configurar o complexo quadro político em que estamos inseridos. Talvez seja preciso ir um pouco mais fundo.

O sociólogo alemão Ralf Dahrendorf, que acompanhou os terríveis anos nazistas de Berlim, traçou alguns paralelos entre a situação que estavam vivendo os países desenvolvidos nessa época e a era que antecedeu o nazismo. Sua preocupação central era o que ele chamou de anomia, situação que ele considerava resultante da impunidade e que consiste em se ter “um número elevado e crescente de violações de normas, sem a correspondente punição”. Segundo ele, é uma condição em que, “tanto a eficácia social, quanto a moralidade cultural das normas, tendem a zero”. Tudo passa a ser visto como permitido, já que nada é punido.

Evidente que ainda não chegamos a esse ponto. Mas não deixa de ser tentador investigar os índices de impunidade atravessando a história do Brasil, como se dela fizesse parte natural. Basta considerar a esteira infinita de crimes hediondos conduzida no embalo dos 21 anos de ditadura civil-militar que infelicitou este país. Ao considerá–la e ao tentar esmiuçar os horrores nela contidos, é inevitável a pergunta: seria apenas casual a incrível semelhança dos métodos repressivos então utilizados – até hoje, criminosamente impunes – com os que se evidenciaram no sequestro, tortura, morte e desaparecimento do trabalhador Amarildo, numa UPP do Rio de Janeiro? Mais do que uma casualidade, não seria o caso de se pensar na manutenção quase intacta da estrutura repressiva e criminosa posta em execução pela ditadura? Em outras palavras, talvez mais dramáticas, poderíamos dizer com firmeza: nós somos sobreviventes do pau de arara; mas o pau de arara também sobreviveu a nós. E rola solto na relação que o Estado mantém com as populações periféricas. O blogueiro Bruno Cavas, autor do blog Quadrado dos Loucos, tenta um resumo aterrorizante do clima estabelecido nessa relação:

O ataque aos manifestantes é indiscriminado. Basta estar na rua, no bar, voltando pra casa. É-se bombardeado com armas químicas, menos letais apenas para quem as experimenta através das imagens do JN. É-se agredido, humilhado, abusado sexualmente e cegado. Os bairros são varridos por pogroms, enquanto ativistas são levados para “passear” pela polícia. A polícia secreta deita e rola nas redes sociais, violando a correspondência e montando arquivos políticos sobre organizações, militâncias ou qualquer um com opinião firme no facebook. Proíbem-se as máscaras, cuja maior ameaça, a eles, é propiciar que negros, pobres e favelados possam se juntar democraticamente e em segurança aos protestos. Chovem mandados de busca e apreensão com o intuito de intimidar as pessoas. À agressão indiscriminada segue a prisão indiscriminada, com base em tipos penais vagos e abstratos, sem provas, verdadeiras aberrações jurídicas produzidas por investigações ordenadas pela cúpula dos governos, a quem muitas instituições penais capitularam”.

É inacreditável que alguém de bom senso julgue possível chegar a algum bom lugar, seguindo trilha tão desastrosa. A bem da verdade, o governo federal tem revelado algumas nuances de sensatez. Os ministros Gilberto Carvalho e Eduardo Cardoso manifestaram–se de forma razoavelmente lúcida, reconhecendo a profundidade social do que está ocorrendo e recusando–se a embarcar na canoa furada da neurose esquerdista, para a qual os chamados “vândalos” não seriam apenas “bando de malucos quebrando tudo”, mas agentes extremistas a serviço do golpe. Mas é tudo ainda muito tímido, sem clareza de propostas, sem um plano convincente de enfrentamento equilibrado da situação.No discurso, há uma constatação quase unânime de que é preciso criar um ambiente institucional democrátic, capaz de coordenar essa situação descontrolada.

Mas, a meu ver, isso jamais ocorrerá, enquanto num dos lados da mesa estiverem sentados os defensores de crimes hediondos (como o praticado contra Amarildo, já referido acima), ou de práticas animalescas, como as praticadas pela polícia paulista, quase diariamente. Gostaria que alguém respondesse, com a devida sinceridade, claro, como se deve comportar o pai que teve a filha gratuitamente revistada na vagina, por vândalos fardados e ditos defensores da ordem democrática. Ou a mãe que teve o filho estupidamente assassinado, por um policial desprezível e também se valendo da farda e da condição de defensor do Estado. Gostaria até de saber como cada um aqui reagiria, se tivesse a indigitada sorte de ser pai ou mãe das viítimas aqui enunciadas ou das centenas de vítimas que uma polícia despreparada, mal formada, mal orientada e mal renumerada produz diária e permanentemente. Quanto a mim, eu não tenho dúvida nenhuma de como reagiria: dificilmente deixaria inteiro o quer que me aparecesse pela frente. Deixo com vcs, o exame sincero de suas consciências.