Recanto Olindense. 1984 by José Cláudio

 

Segundo Fernando Pessoa, “O poeta é um fingidor/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente” (Autopsicografia”). Versos que recitamos sem perceber que, lidos como estão, não fazem nenhum sentido. Que nem o coitado desse poeta imaginário, nem ninguém, pode fingir que é dor uma dor que sente de verdade (deveras). Porque ou se finge uma dor que não se sente, ou verdadeiramente se sente uma dor que então já não é fingida. Tempos depois ouvi em obra um pedreiro pedir, a seu ajudante, “areia de fingir”; compreendendo afinal ser essa areia tirada dos leitos do rio, que se mistura ao cimento, não é de fingir ? no sentido estrito em que hoje empregamos o termo, de esconder o pensamento. Mas de construir. E também compreendi que esse verso Pessoa destinou a iniciados ? o que fazia com freqüência. Pois fingir, em português arcaico, é também construir. Retomando o sentido, em latim, do verbo fingere. Sem contar que fingidor era profissão comum na belle époque portuguesa do século XIX, para designar artesões que esculpiam salas e telhados, em gesso e nessa areia, com colherinhas de fingir.  No fundo, o próprio fingimento não é senão a construção de uma outra realidade ? algo comum a poetas e outros seres ungidos com o dom de iludir. Gente que vaga pela vida vencendo batalhas misteriosas, sofrendo sofrimentos inauditos e amando amores implausíveis. Só que ditos sonhos lhes pertencem apenas enquanto guardados nas suas almas; porque, postos no papel, ganham vida própria e passam a ser de todos nós, indeterminados cidadãos comuns. Com os pintores acontece o mesmo. Até porque, segundo os dicionários, fingidor quer dizer também pintor. Essa enfadonha e longa introdução tem somente o sentido de homenagear nosso grande pintor José Cláudio ? que, amanhã, estará fazendo 90 anos. Viva Zé Cláudio!!! E faço isso contando essa historinha. Ligou Caetano Veloso e marcaram encontro às três da tarde. Na casa do próprio Zé Cláudio, em Olinda. Dando-se que, como todo bom baiano, Caetano gosta de rede. Chegou tarde, já escuro. E encontrou na casa somente Cícera.

– Zé Cláudio está?

Aqui, parêntese para dizer quem é Cícera, personagem de romance.  Soberana em sua cozinha, é a dona da casa. Tanto que se alguém chegar, e não for logo cumprimentá-la, está perdido. Zé Cláudio pede para servir cafezinho, ela traz só um e diz

– Esse é para o senhor. Seu amigo sirvo não, que ele é muito mal-educado.

Está explicado, pois. Mais ou menos. Voltando à pergunta de Caetano, Zé Cláudio está?, Cícera respondeu sem maiores preocupações

– No dentista.

– Posso esperar por ele aí dentro?

– Claro que não.

E voltou a se preocupar com sua sopa. Uma resposta natural, para ela. Pouco antes, por exemplo, não deixou entrar Chico Buarque. Só que Chico se conformou logo. Pedindo apenas o acesso, à casa, para uma amiga que precisava fazer suas necessidades.

– Ela que faça aí fora mesmo.

Nesse ponto da conversa bom dizer que a casa fica em Olinda, no alto de um morro. Depois da casa de Abel, é como ensina o caminho, sem que se saiba quem seria o tal Abel. A quase 10 minutos da rua em que passam taxis. E o músico teve a infeliz ideia de não ficar com aquele no qual chegou. Já se preparando para descer o ladeirão, com risco até de ser assaltado, insistiu

– A senhora, pelo menos, diz a ele que estive aqui?

– Digo sim.

Desconfiado, e sem certeza de que seu recado seria mesmo transmitido por aquela mulher tão estranha, fez uma última pergunta

– A senhora desculpe mas sabe quem sou?

– Sei. É Caetano Veloso. Mas eu prefiro Tarcísio Meira.