Penso que Tarcísio Pereira foi muito feliz na escolha do slogan de sua hoje mítica livraria: a Livro 7. Slogan bom não é fácil, muitas empresas vivem quebrando a cabeça e gastando dinheiro para achar algum que se fixe na memória dos clientes. Tarcísio, como que já antecipando as inovações que faria e a força singular de seu projeto, criou este slogan: “Livro 7 – uma livraria”, que tem várias virtudes: ser simples, conciso e (ótimo paradoxo) ser tão modesto quanto ambicioso. Sem talvez o saber, Tarcísio, desde o início, havia traçado o seu destino de criador e o perfil de sua criatura. Logo se saberia que ser “uma” livraria não significava “ser alguma”, uma entre outras, mas uma única, singular, excepcional. O que de fato viria a tornar-se verdade quando, por quase três décadas, a Livro 7 caiu nas graças do Recife, alçada a uma espécie de ágora e transfigurada num “locus amoenus” no deserto humano da metrópole.

Ingratamente levado pela Covid em janeiro de 2021, Tarcísio recebe agora, gratamente, a melhor homenagem que ele, como livreiro, talvez possa receber: um livro que evoca a sua vida e o estampa por inteiro para contemporâneos e pósteros. Refiro-me a “Tarcísio Pereira: todos os livros do mundo”, de autoria do jornalista e escritor Homero Fonseca.

Feliz o biografado que encontra um Homero Fonseca, cuja pena jamais perde o equilíbrio narrativo e sabe recordar como se ao nosso lado, ressuscitado, estivesse o próprio Tarcísio em sua pontual cordialidade. Mas Homero vai ainda mais longe, senão mais perto e pertinente, ao retratar toda uma época que, malgrado confundir-se com a da ditadura militar, teve uma força coletiva e uma efervescência geracional. Enfim, Homero Fonseca escreveu um perfil biográfico como um belo afresco azul de um tempo memorável para os que o viveram.

Tivesse Tarcísio, como em certo poema de Mauro Mota, um instante de consciência póstuma, decerto estaria não só honrado, mas muito contente com o livro que lhe é inteiramente dedicado. E quando digo “inteiramente” quero também me referir à excelência e à beleza do projeto gráfico de Luiz Arrais, tão bem inspirado no próprio espírito de Tarcísio. Nele, neste projeto de experiente designer de livro, banhamo-nos no bom gosto e curtimos criador e criatura a se desnudarem entre cortinas azuis… De um ponto de vista prosaico, mas útil e agradável, é ainda de se louvar a escolha das fontes e do seu tamanho, o que ajuda a leitura de nossas “retinas tão fatigadas”.

“Tarcísio Pereira: Todos os livros do mundo”, uma produção da Cepe Editora, é livro tão fluente que o lemos praticamente de um fôlego e ficamos tristes quando se encerra. Enriquece-o, além de muitas fotos, um sem-número de depoimentos de clientes, amigos e parceiros. São vozes que, ao exaltarem, cada uma a seu modo, o homenageado e sua criação, terminam por saborear as “madeleines” que só agora, passados vários anos, trazem em perspectiva o que era proustianamente “a nossa vida de então”. Nessa polifonia tão bem regida por Fonseca, é de se notar a pluralidade de significações que a Livro 7 possuía. Cada um de nós, seus frequentadores, tínhamos nela um xodó, e nenhum livreiro foi tão decisivamente plural e fraterno quanto Tarcísio para nos manter enrabichados! Afinal de contas, ele era alguém que gostava de gente, que amava as pessoas, que tinha prazer em aproximá-las, como se restaurasse, na palavra “comércio”, o sentido figurado que a purifica de toda pátina viciosa.

Ao ter servido a “três gerações literárias”, como ele próprio disse, sem falar de uma legião de artistas e de leitores, Tarcísio Pereira soube se fazer amar pelo Recife e inscreveu seu nome, sem qualquer pretensão, na história cultural da cidade. A Livro 7 foi uma megalivraria (entrou até para o Guinness Book), mas foi sobretudo incomparável porque em sua alma, que era Tarcísio, havia generosidade e grandeza de espírito. Eis uma das forças de sua mitológica ascensão e de sua permanência em nossa memória.

Finalizo pelo começo. Não o meu começo, mas o significativo começo que Homero Fonseca quis imprimir a seu livro e que, em sua elipse, também nos fala de uma vocação que se cumpriu, de um homem que encontrou sua verdade e de um cidadão que fez história:

“Ele não era escritor nem poeta. Não pintava. Não esculpiu um boneco de barro. Não compôs uma sinfonia nem um frevo-canção. Jamais subiu num palco para interpretar Hamlet ou João Grilo. Não arquitetou nenhum belo prédio. […] E, no entanto, ninguém pode falar da história da cultura no Recife sem dizer o nome de Tarcísio Pereira”.