Diversity designed by Nick Slater

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Adam Przeworski tem uma definição extremamente simples de democracia: quando os perdedores, calmamente, saem, dando lugar aos vencedores. O Brasil mostrou ao mundo e, sobretudo, à extrema direita mundial que é um país em que as instituições democráticas são fortes o bastante para suportar e vencer os golpes do neofascismo. E que o presidente em exercício não tem nada de democrata.

Nessa batalha, há muitos heróis. Em primeiro lugar, os eleitores que escolheram a permanência da democracia. Em segundo, a firmeza dos juízes do TSE, seu presidente à frente. Em terceiro, a perseverança de um nordestino, pau de arara, que pela terceira vez assume a presidência da República.

A maioria dos analistas hoje estão discutindo com será esse terceiro governo. A composição política do governo Lula, o quanto ela será restrita ou ampla, etc. Prefiro discutir um outro assunto: uma das principais, senão a principal tarefa do novo governo é a de desmontar a polarização política do pais. Em outras palavras, reduzir a base social dos grupos neofascistas que se organizaram nos últimos cinco anos, e no momento em que escrevo ainda persistem bloqueando estradas, impedindo que pessoas e mercadorias possam transitar. E para isso, é necessário entender a base eleitoral de Bolsonaro, que ganhou quase metade dos votos expressos na mais acirrada eleição que este país já teve.

É errôneo imaginar que o Brasil tem 58 milhões de eleitores que são antidemocráticos ou neofascistas. A base eleitoral do atual presidente é muito mais complexa, e os neofascistas, embora muito ativos, são uma grande minoria.

A base politica do bolsonarismo se alimenta de segmentos sociais e políticos distintos e mesmo contraditórios. É possível visualizar pelo menos cinco com alguma importância.

O primeiro segmento social é formado por defensores do regime autoritário, pois julgam que a democracia não garante a ordem e as mudanças que eles almejam: acabar com a questão de gênero nas escolas, eliminar os “comunistas” da vida política, submeter o Judiciário à vontade do presidente, aplicar a norma de que bandido bom é bandido morto etc. Não deve alcançar 15% do corpo eleitoral brasileiro.

O segundo segmento é formado por evangélicos que veem no PT uma organização contra a família e seus valores conservadores. É o segmento social conservador e mesmo reacionário quanto aos costumes. Normalmente machistas, veem no Lula uma encarnação do satanás, do inimigo de sua religiosidade. Sentimento alimentado pela pregação de pastores nem sempre honestos, e mesmo politicamente oportunistas.

O terceiro segmento é parte da classe média de carácter moralista, como a antiga UDN, que se escandalizou com a corrupção do PT e não o perdoa, alguns dos quais seus antigos eleitores. Entre estes, os que percebem que Bolsonaro não é nenhum santo (veja-se as rachadinhas, os imóveis comprados com dinheiro vivo, etc), julgam que seus deslizes fazem parte da normalidade política do País, o que não ocorre com o mensalão, e sobretudo, os crimes denunciados e julgados pela Lava Jato, apesar de o Moro ter comprometido seu julgamento tornando-se um político defensor do Bolsonaro.

Mas há dois outros segmentos cuja presença poucos registraram. O segmento, pequeno, mas ativo, composto por aqueles que possuem uma visão individualista da democracia, confundindo-a com a liberdade de os cidadãos dizerem o que pensam, terem as armas que querem, dirigirem na velocidade que lhes dê na cabeça. Segmento social que defende a liberdade individual acima de tudo, mesmo que a custa de outros. Figuras autocentradas, com pouca percepção do que seja uma vida em sociedade.

E o último segmento é formado pelos economicamente liberais ou neoliberais, que consideram o PT como intervencionista e assistencialista. São os que defendem o estado mínimo, a ausência de bolsas e cotas para favorecer os socialmente vulneráveis, pois, segundo seus componentes, alimentam a “preguiça” e o trabalho informal. Muito presente no sul e interior de São Paulo.

Porém não se deve esquecer os que foram beneficiados pela máquina, e julgaram que estes benefícios eram importantes e deveriam perseverar, pelo menos em parte. Afinal, as benesses da máquina pública compram votos. E elas não foram poucas.

Portanto, a base eleitoral bolsonarista é uma gama social complexa, movida por interesses distintos. Alguns segmentos sociais com escopo ideológico, outros de caráter mais pragmático ou circunstancial. Se os primeiros são difíceis de serem desmontados, pois oposição baseada em crenças e valores, muitos irracionais; os segundos são desmontáveis, seja com benesses, seja com posturas e atitudes que desmintam algumas falsas noções que se alastraram relativamente à esquerda e aos vencedores.

Este é um desafio do novo presidente, para reduzir o grau de intolerância e violência nas relações sociais, inclusive familiares, e permitir uma recuperação da coesão social de que tanto necessitamos. Lula tem habilidade para isso, resta ver se a tropa radical de seu partido, obtusa como poucas, permitirá.