Tudo o que é África, brasilidade e arte está gritando dentro de mim. Gritando de alegria. A notícia vai além do que é notícia: é signo e sino dos mais festivos. Diz da reparação do que foi usurpado pelo fundamentalismo e fanatismo mais abjetos. É como se uma árvore voltasse mais exuberante à terra de onde foi arrancada. Dessa forma, a festa da democracia se prolonga e se espraia por este janeiro de grandes esperanças. Refiro-me à volta da pintura “Orixás”, de Djanira (1914–1979), ao seu lugar no Palácio do Planalto.

“Se memória desta vida se consente”, como escreveu Camões, a grande pintora brasileira devia estar arrasada, pois, há 3 anos, sua obra desceu aos infernos (uma pena que não tenham descido junto os próceres do finado e fascistoide governo!), digo, foi retirada de exposição por inconfessáveis e visíveis motivos. Foi um gesto de negacionismo da arte e da própria brasilidade. Foi um golpe mesquinho, em tudo condizente com o desprezo nazifascista pela arte mais genuína.

Agora o céu dos artistas está em festa, e Djanira se recupera, como todos nós, do pesadelo bolsonarista. Saravá, “Orixás” e orixás! Saravá, Djanira! O Planalto volta a ter muito axé! Uma energia sagrada volta a circular em corredores conspiracionistas, em paredes que presenciaram escárnio e uma sede autocrática e insaciável de poder. Saravá!  Saravá, democracia que retorna! Arte, quem não sabe?, é libertação! “Quem faz um poema salva um afogado”, escreveu Mario Quintana. E quem pinta um quadro como “Orixás”? Quanto Djanira salvou a gente como nação e pátria de fato amada?!!!

Djanira, dispensável dizer, é uma imensa artista. O nunca assaz louvado Rubem Braga nos ajuda a sumariamente biografá-la. Num artigo da revista “Visão”, “A dura e imbatível Djanira”, de 1965, nos diz que ela não teve uma vida fácil. Foi doméstica, ganhava muito pouco. Aos 23 anos, chega-lhe a tuberculose. Já casada com um oficial da Marinha Mercante, faz de sua casa, para aumentar a renda do casal, uma pensão! Entre um papo e outro com os clientes à mesa, começa a desenhar e passa a ouvir elogios, tem jeito para a coisa. Matricula-se num curso noturno, aprimora-se! Costura pra fora! Uma cliente da costureira, apreciando seu talento para as artes plásticas, apresenta-lhe ao pintor Emeric Marcier (1916–1990), que vai morar de graça na sua pensão: a paga eram suas aulas à jovem artista. Fica viúva. Vieram as primeiras exposições. Um de seus primeiros clientes foi Portinari. Um novo amor foi o pintor Milton Dacosta. Depois morou nos Estados Unidos, onde, relata Rubem Braga, “se manteve fazendo retratos a preço vil”. Em 1947, volta ao Brasil. Faz exposições de sucesso. Casa-se, em 1952, pela segunda vez. Então, arremata o grande cronista: “Acontece o imprevisível: depois de tanto êxito, entra em uma fase de penúria e decepções” e chegou a ser presa “por engano ou estupidez policial” nos primeiros dias após o golpe de 1964.

Eis, em poucos traços e pálidas tintas, o quadro de vida sofrido e aventuroso da grande modernista brasileira. Djanira, faço eco a Braga, desmente em suas obras a “persistente lenda de pintora ‘ingênua’ ou ‘primitiva’”. É que nela se dissimula, como quase em todo grande artista, o labor técnico que sustenta e é sustentado pela criação. Jorge Amado, como lemos na Wikipedia, provavelmente pensando nos mais frequentes temas da artista, nos assinala que “[…] ela é a própria terra, o chão onde crescem as plantações, o terreiro da macumba, as máquinas de fiação, o homem resistindo à miséria. Cada uma de suas telas é um pouco do Brasil”. 

Num artigo do “Diário do Nordeste”, a escritora Ana Miranda nos explica quem são os orixás evocados pelo quadro que agora “ressuscita”: “A pintura é imensa, bela, em cores alegres, limpa e de formas harmoniosas. São três orixás femininas: em vermelho, Iansã, a guerreira dos relâmpagos e das ventanias, que oferece otimismo e grandes paixões; de amarelo, Oxum, minha mãe, entidade das águas doces, cheia de doçura, representa a beleza, a fartura, a maternidade; e, em azul, Nanã, a mais antiga das deusas do candomblé, ela é a sabedoria. Três mães. Três mulheres protetoras”. Eis aí tudo o que nos foi usurpado pela ignorância obscurantista do governo Bolsonaro: beleza, otimismo, fartura e sabedoria…

Enfim, voltam os “Orixás”, e, com eles, volta o Brasil plural e solar, que sabe, deve e pode oferecer ao mundo o espetáculo da diversidade! A arte de Djanira, quem duvida?, é uma dádiva de todos os orixás. Que nunca mais na história deste país repita-se a vergonha de um sequestro abusivo e preconceituoso como foi esse do quadro de Djanira! Mil vezes saravá!