O Recife não é Veneza brasileira. Seria, no gosto de Albert Camus, a Florença do trópico. Mas, nós, recifenses, que sentimos o cheiro de mangue, comemos caranguejo, vemos manguezais, convivemos com rios e canais, sabemos que o Recife é mangue.
Mangue não é só paisagem natural. Não é só visão urbana. É também, e sobretudo, conjuntura humana. Circunstância social. Inspiração musical. É o homem caranguejo, homem animal, pescador, faminto, provedor. Homem do mangue, manguezal, lama, rio. Sobrevivente.
Esta é a certidão de batismo do Recife. É seu DNA. O Recife é rio e terra. Pedra e rio. E, entre um e outra, mangue, lama. Caranguejo. É desse berço, molhado, insurgente, inconformado, que veio Josué de Castro. E seu ciclo do caranguejo: homens jogam detritos na lama, servindo de comida para caranguejos, que servem de alimento para os homens. Sequência infinda. Vital.
No ambiente de pobreza do Recife, fome é alimentada com caranguejo. A inspiração, a emoção, a lucidez de Josué de Castro vieram daí. O cenário, com limites sociais de renda e de nutrição, estimulou a sensibilidade do pesquisador, escritor, médico, cientista. Em 1946, foi publicado Geografia da Fome. Enorme repercussão. Porque, nele, o autor acentuava: fome não é falta de alimento, fome é estrutura socioeconômica injusta. Numa das edições, um prefaciador escreveu: Falar sobre a fome é perigoso. Porque ela só atinge miseráveis.
O Brasil, então, era país de famintos. Continua sendo. Setenta e seis anos depois. Sobre o livro, Barbosa Lima Sobrinho disse que o Brasil tem duas cartas de descobrimento: a de Pero Vaz de Caminha e a Geografia da Fome. Josué partiu do conceito de que há dois tipos de fome: a fome aguda, em que as pessoas não comem. E a fome crônica, em que as pessoas comem insuficientemente. As carências são de proteínas e cálcio, ferro, vitaminas A, B1, B2 e C.
As regiões brasileiras mais atingidas são o Nordeste e a Amazônia. No final dos anos 90, o sociólogo Betinho defendeu iniciativa para combater a fome no país. O governo, à época, encampou a ideia e lançou Fome Zero. O programa foi estruturado em três eixos: 1. Políticas de transferência de renda (Bolsa Família); 2. Políticas de mudança estrutural (reforma agrária, agricultura familiar, saneamento, saúde); 3. Políticas educativas voltadas à qualidade do ensino e da merenda escolar.
Junto com o Fome Zero foi criado o Conselho Nacional de Segurança Alimentar. Destinado a garantir a oferta estável de alimento a populações carentes. Este Conselho foi extinto em 2020 por Bolsonaro.
Josué de Castro foi eleito duas vezes deputado federal. E recebeu duas vezes o mandato de presidente da Food and Agricultural Organization – FAO. De 1952 a 1956. Reconhecido como um dos maiores especialistas em alimentação, foi indicado três vezes para o prêmio Nobel. Marcou sua atuação política por irrevogável senso social. Em 1964, foi cassado pelo golpe militar.
Antes, em 1953, Josué publicou programa de 10 pontos para vencer a fome. Entre eles, consta: reforma agrária, policultura, aproveitamento de terras cultiváveis, redução tributária sobre terra destinada a produzir alimento, intensificação de estudos sobre alimentos (bromatologia) e nutrologia (nutrição).
O mundo dá voltas. Promove encontros improváveis. Mas que estavam na agenda das estrelas. Nos anos 70, o crítico musical José Teles apresentou o compositor e cantor, Chico Science, fundador do mangue beat, a Josué de Castro. Dois notáveis caranguejos da ciência e da arte. Conversando no mangue universal do Recife. A partir daí, o vocabulário do caranguejo musical incorporou novas palavras: lama, lixo, urubu, miséria, caos. Da lama ao caos.
Na praça do Marco Zero, ali no bairro portuário do Recife, está a escultura de Cícero Dias. Serve de maravilhoso assoalho, colorido e moderno, aos que chegam á Cidade. Tapete inspirado no movimento de sonhada rosa dos ventos. Pois bem. Quem desfruta da arquitetura tropical, plantada, ali, defronte do mar, sente, vindo da bacia do Pina, um cheiro forte, molhado, recifense. É o mangue. Caranguejo. Rio. Manguezal. É o Recife, resistente, na franja da fome, no gesto audaz e solidário de Josué de Castro.
Só existe um tipo de desenvolvimento : o Desenvolvimento humano(Josué de Castro)
O paraibano José Américo de Almeida, autor de A Bagaceira, disse que: “Pior do que morrer de sede no deserto é não ter o comer na terra de Canaã”. Canaã seria aqui? oh! dúvida atroz… Parabéns, Cavalcanti por mexer nessa ferida, ferida que nunca cicatriza. A propósito, sabe nos dizer se no céu tem pão? Foi uma criança, nascida aí em Recife, se não me engano, que, faminta, no leito da morte, pergunta para a sua desesperada mãe: Mãezinha, no seu céu tem pão? Horas depois, a alma daquele anjo subia ao céu…em busca do pão que aqui lhe foi negado.
“Quando alimentei os pobres chamaram-me de SANTO, mas quando perguntei porque há gente pobre chamaram-me de COMUNISTA.” Dom Hélder Câmara
Lucidez meridiana.Texto emblemático ,direto espelhando perfeitamente a profundidade do tem.Parabéns ao autor e a Revista.