Meus primeiros dias no Brasil foram péssimos. Já vacinado, queria sair da França, de Paris em especial. Mas não queria necessariamente sair da Europa. O que não faltavam eram convites de bons amigos para ir para Portugal e me enfurnar onde bem quisesse, desde o conforto atlântico de Cascais até a Casa Bacalhau, da Póvoa de Varzim, onde meu coração bate mais forte. Outras opções também tinham um apelo especial. Suíça, Espanha e Turquia eram tentadores. Mas, é evidente, o Brasil não podia ser descartado. Bem ou mal, tinha casa em São Paulo e queria rever umas pessoas no Recife. Além do mais, tinha papéis a assinar. Que iam desde uma separação conjugal até coisas da burocracia bancária. Alguém já me convencera de que eu tinha que baixar o aplicativo do banco no celular, mas isso eu não conseguiria fazer do exterior. Perguntei aos amigos como estava a situação aqui. Deveria voltar? Uns disseram que ficasse na Europa. Outros, pernosticamente, falavam de uma tal média móvel de covid, na sempiterna mania brasileira de usar jargão da moda, de preferência como tecnocrata. Ninguém me mandou a foto de um bar com as portas trancadas. Se tivesse feito isso, eu teria ficado em Paris. Mas voltei.
Não fui a Pernambuco logo que cheguei. Pelo contrário, apesar de hospedado num hotel porque meu apartamento estava muito empoeirado – se duvidar, assim continua -, eu quase fiquei impedido de ir à esquina. Pelas minhas estimativas, eu achava que tinha uns R$ 30 mil na conta corrente. Talvez um pouco mais. Era só uma estimativa porque eu não tive como acessar nem o meu saldo nem minha modestíssima movimentação durante todo o tempo que estive fora. Qual não foi minha surpresa e desalento ao contatar que tinha apenas hum mil reais. Estou acostumado a ter pouco dinheiro, mas não imaginava que estivesse reduzido a 250 euros. Menos mal que tinha trazido uns 300 euros em espécie, o que reduzia minha disponibilidade de dinheiro em espécie a uns dois mil reais. Quando fui ver o extrato, vi que meses antes tinha havido uma mordida colossal nas minhas parcas reservas. Ao lado dela, havia uma sigla que abomino porque acintosa à cidadania livre: RF. O que eu tinha feito para merecer aquela garfada da Receita Federal, eu que prefiro sabotar meus ingressos a tratar com esse pessoal? Na impossibilidade de falar com o banco, me virei com as pessoas que conhecia.
A pergunta era: sob que pretexto a Receita Federal poderia cometer semelhante despautério? Acaso eu tinha processos trabalhistas, dívidas previdenciárias ou afins? Ninguém soube me dizer algo consistente, todas as versões caíam no vazio. Até que alguém me falou que talvez aquilo não tivesse sido multa ou confisco, senão uma aplicação financeira em renda fixa. RF de renda fixa, disse ele. Rebati. Nunca na minha vida eu gostei dessas coisas, jamais autorizara funcionário algum do banco a mexer no pouco que tinha. Mas meu irmão dera o seu OK. E disso eu só saberia depois de perguntar a respeito. Falando com uma pessoa do banco – de que ele mesmo fora funcionário -, o corporativismo fez com que ele autorizasse que meu dinheiro fosse aplicado. Incapaz de ver meu saldo, apesar das súplicas que eu fazia à distância, à confraria de colegas não faltou a solidariedade no nefando cumprimento de metas. Sim, era verdade. De miserável, me tornei líquido de novo. Mandei que colocassem o dinheiro de volta na conta corrente e só assim tive uma noite de sono. Voltara com o pé esquerdo para a Pátria- Mãe-gentil. Mas poderia ter sido pior.
Um pouco mais animado, fui ao supermercado Santa Luzia. Como estávamos perto de Pessach – a Páscoa judaica, para simplificar -, rendi homenagens ao meu passado de agregado das famílias judias para comprar as iguarias da época. O que incluía uns bolinhos de peixe, chamados de guefilte fish, em iídiche. Com as finanças restauradas, achei tudo barato. Meio quilo de guefilte fish a R$35,00 era um presente. Ao passar pelo caixa, vi que o preço indicado era para 100 gramas. E que a barquete que eu levava custaria quase R$180,00. Mais tarde, numa rede social, fiz uma postagem sobre o fato. Recebi enxurradas de mensagens solidárias. Numa delas, uma senhora me pedia o endereço e se dispunha a deixar na minha portaria uma porção generosa que sobrara do segundo seder de sua casa. Agradecido, dei o endereço e fiquei com um estoque excedentário que nem todo rabino dos Jardins tinha. Desse gesto simpático, resultou mais tarde um encontro pessoal. Muito espontânea e divertida, essa senhora se apresentou como ex-publicitária. Disse que não sabia bem se recomeçaria a vida profissional depois da pandemia, mas que estava pensando a respeito. Então falei de “Mazal Tov” pela primeira vez no Brasil.
“Se você um dia tiver uma editora, talvez eu possa te oferecer um livro simpático. Não, não faça essa cara, não são os meus. Estou falando de um livro legal que li na pandemia.” E expliquei a história do livro. É claro, o ponto interessante da conversa residia justamente no fato de minha nova amiga não ser uma profissional do ramo. Se fosse, a abordagem não teria sido tão divertida. Perplexa com a ideia, não houve nem empolgação nem indiferença. Era visível que o assunto logo cairia no esquecimento, mas que mais adiante poderia voltar, talvez até por iniciativa dela. Meses mais tarde, vi que ela não reagiria. E que se alguém tivesse que tomar uma iniciativa, esta pessoa seria eu. Numa manhã de novembro de 2021, resolvi escrever para Margot Vanderstraeten para me apresentar. Escrevi um in-box no Facebook sem grande expectativa de que ela me respondesse. Não que me achasse desimportante, mas porque não é comum que as pessoas consultem aquelas caixinhas de correspondência. Ela respondeu. O tom era receptivo, mas a escritora admitiu que quem cuidava disso era o seu agente, em Amsterdam, e que ela não era de se envolver com questões contratuais.
De qualquer forma, eu sentia que se houvesse algum impasse, a simpatia dela poderia representar um voto de desempate. Na minha cabeça, minhas chances eram ínfimas. Mas, conforme eu logo saberia, tudo deu certo. O que me surpreendeu foi a reação da editora diante da notícia. “Eu nunca fiz um contrato internacional. Como eu posso avaliar se essa negociação de royalties que você fez foi boa ou não? E os custos da tradução, edição, impressão e distribuição? Tudo o que eu não queria era dar um passo maior do que a perna. É claro que eu agradeço, mas devo admitir que você estragou meu sábado ensolarado. Eu mal imaginava que enquanto tomava sol à beira da piscina, você armava uma conspiração internacional. Pobre de mim!”. Na celebração do contrato, ficou acordado que, atendendo ao pedido da autora, eu mesmo faria a tradução do livro, partindo da versão francesa, da tradutora Isabelle Rosselin, a despeito de algumas liberdades que, aparentemente, ela tomara com a paragrafação, que não estavam presentes em outras línguas. 2022 transcorreria assim sob a égide desse trabalho. Se tudo corresse bem, em março de 2023 nós poderíamos lançar o livro.
Poucos empreendimentos me trariam tanto entusiasmo quanto foi essa aventura que começou num café parisiense. No próximo capítulo, a conclusão.
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