Samuel Johnson

Samuel Johnson

 

Jorge Luis Borges, numa de suas aulas de Literatura Inglesa (Cf. “Borges Professor”), escreveu que James Boswell “[…] pressentiu seu destino, assim como Milton soube que seria poeta antes de escrever uma única linha, pois sempre sentiu que ele seria biógrafo de algum homem ilustre da época”. Borges ainda advoga por Boswell, aconselhando-nos a ler a famosa biografia de Samuel Johnson, pois “[…] conhecendo-se a pessoa, apreciando-a, tem-se muito mais vontade de ler a obra”.

Se Boswell “pressentiu seu destino” de biógrafo, é provável que Johnson tenha também, por sua vez, pressentido que o então jovem admirador escocês seria o seu biógrafo ou, pelo menos, um de seus biógrafos. O fato é que a “Vida de Samuel Johnson” nos relembra deliciosamente a famosa frase de Vinicius de Moraes: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”. Aos poucos, não sem logo sentir toda a rispidez de Johnson (que alguns chamavam de “urso” justamente por essa rispidez), Boswell, jovem aristocrata escocês, aproxima-se, com extrema veneração, daquele que, nas palavras de Harold Bloom, em seu “O cânone ocidental”, é o “[…] crítico canônico propriamente dito, não igualado por qualquer crítico de qualquer país antes ou depois”. Aproxima-se e, ganhando a confiança do grande homem, o incita a falar. A falar sobre o quê? Ora, sobre os mais variados temas: religião, moral, política, educação, viagens, Londres, autores da época, arte, linguagem. Estes não seriam temas apenas de interesse do biografado, mas também do próprio biógrafo e, claro, de futuros leitores. Daí termos  em mãos uma biografia intelectual.

Gravitando como um bem antenado satélite em torno de seu biografado, Boswell não perde oportunidade para saber a sua opinião sobre uma miríade de assuntos. Concordando ou não com o imenso inglês, o biógrafo vai tomando nota das palavras tão inspiradas quanto aparentemente espontâneas de Johnson. O escocês faz o já célebre autor falar, provoca-o, sugere-lhe, torna-se um privilegiado confidente. Boswell não se furta a fazer perguntas a que o sábio simplesmente dá as costas, recusando-se a responder. Johnson, aliás, quase sempre discorda do amigo mais jovem. O escocês parece intuir que isso também faz parte do jogo. Encena-se um jogo? Talvez, mas com a naturalidade dos melhores encontros da vida. Boswell, fiel à oralidade, de fato consegue imprimir espontaneidade ao seu texto. Por isso, ouvimos na obra a voz e as gargalhadas do Dr. Johnson. 

Ruy Castro, em seu recente “A vida por escrito: ciência e arte da biografia”, recorda que o biógrafo teve “[…] total acesso pessoal a Johnson durante 28 anos […]” e que isso “[…] não impediu que os defeitos do biografado viessem à tona no texto final”. Verdade. O “grande homem” também é de carne e osso. Vemos, assim, o biografado em sua intimidade, não só porque Boswell se vale de inúmeras cartas e notas pessoais de Johnson, mas porque transcreve seus encontros com o frescor da verdade. E a verdade é que o Dr. Johnson era preconceituoso, monarquista, conservador (era um “tory”), preguiçoso (sim, não obstante seu trabalho gigantesco como dicionarista da língua inglesa e escritor), rude no trato pessoal e um bocado carola. Enfim, não lhe faltavam grunhidos de urso nem delicados gemidos de piedoso crente.

Nos curiosos registros do biógrafo, vemos Jonhson em toda a sua liberdade de movimentos e nos mais diversos ambientes: jantares, reuniões literárias, encontros protocolares, igreja e tavernas. Uma dessas tavernas londrinas, A Coroa e a Âncora, era uma das preferidas de ambos. Em sua denominação, tomamos a liberdade de perceber um apelo simbólico além do simbolismo britânico já presente, pois Johnson é a “coroa” (não apenas o coroa!) da história, quer do ponto de vista intelectual, se considerarmos  sua inteligência e sua erudição privilegiadas, quer do ponto de vista social, uma vez que ele representa uma inequívoca liderança cultural no tantas vezes fecundo século 18. Como “coroa”, por ser um convicto monarquista, é dele que vem o brilho das opiniões. Boswell, por sua vez, é uma espécie de âncora para seu amigo mais velho; fixa seu biografado sem perder de vista as ondulações do “mar” e o desempenho de seu “barco” repleto de tesouros espirituais. Na condição de “âncora”, ele “submerge” para que possa desempenhar com maestria o seu papel. Enfim, âncora é a prosa; coroa, a poesia e a sabedoria do imenso inglês.

É longa a “Vida de Samuel Johnson”. Longa, mas não maçante. Para Borges, pode ser lida não só apenas na ordem cronológico-sequencial em que foi escrita, como também em páginas prazerosamente abertas ao acaso. Para o gênio argentino, a biografia de Boswell é “[…] uma obra dramática com diversos personagens”. Sim, nela vemos o embate “dialógico” de Jonhson com seu tempo e com seus ilustres pares. Mas o que também salta à vista é que o advogado e viajante escocês (para Jonhson, que não apreciava a Escócia, “o menos escocês dos escoceses”) cumpriu o seu destino: com fervor filial, tornou-se um pioneiro da biografia moderna em 1791, ano em que lançou seu belo livro. Quiseram os fados que o Dr. Jonhson, falecido em 1784, não chegasse a ver publicada sua hoje famosa biografia. Não custa imaginarmos que, na qualidade de “urso”, sorveria o mel de suas páginas, mas também daria umas patadas paternais na obra monumental que o humaniza e multiplica sua grandeza.