Ao contrário do que comumente se imagina, nem sempre há uma correspondência direta entre o desenvolvimento socioeconômico e o cultural. Os teóricos da literatura René Wellek e Austin Warren, num livro já antigo, mas não ultrapassado, “Teoria da Literatura”, registram que o próprio Marx se deu conta disso ao perceber que “[…] é oblíqua a relação entre a literatura e a sociedade. Na ‘Crítica da Economia Política’ reconhece que ‘…] certos períodos do mais alto desenvolvimento artístico não têm qualquer conexão direta com o desenvolvimento geral da sociedade nem com a base material e a ossatura estrutural da sua organização. Atente-se no exemplo dos gregos em comparação com as nações modernas ou até Shakespeare’”. Perdoem-me, o leitor e a leitora, a longa, mas necessária. citação. Logo vou emendá-la com outra, não menos necessária.

Num revê ensaio intitulado “A Literatura e os Alfabetizados” (Cf. “Reflexo e Realidade”), Otto Maria Carpeaux evoca que, no passado, “[…] o caráter aristocrático da arte literária era apoiado pela falta de alfabetização das massas (e pela aversão de outros grupos, burgueses, contra as leituras profanas)”. Seguindo essa linha histórica, Carpeaux nos traz dados curiosos. O mais curioso desses dados (e aqui faço a prometida emenda com a citação de Marx por Wellek e Warren) é que eles como que provam os eventuais descompassos entre sociedade e produção literária. De fato, nada parece impedir que, da aridez de um ambiente analfabeto, brote, por assim dizer, criações literárias de alto nível. Os bons livros, como escreveu Proust, são fruto do “silêncio e da solidão”, o que não quer dizer falta de interação com seu tempo, de que é prova a própria obra proustiana, hoje canônica sob vários aspectos e em absoluta sintonia com sua época.

Vejamos os dados que Carpeaux nos traz. Segundo Voltaire, diz ele, apenas 3 mil pessoas, na França do século XVII, liam Racine e La Bruyère. A melhor literatura italiana, de Dante até o fim do século XIX, surgiu num povo que ostentava um índice de 75% de analfabetos, o mesmo se dando com a literatura russa do século XIX.  Na Alemanha, por volta de 1800, Goethe e Schiller conviviam com 80% de analfabetos. Não sem ironia e bom humor, Carpeaux nos observa: “O fato novo, hoje, é o seguinte: todos (pelo menos na Europa) sabem ler; mas não queiram perguntar, por favor o que é que eles leem”.

No Brasil atual, não é difícil imaginar o que se lê de literatura malgrado o esforço de marketing das editoras dentro e fora das redes sociais. Nossa alfabetização é praticamente um fino e quebradiço verniz; e o analfabetismo funcional, uma triste estatística. No mais, nossa incipiente literatura não ajuda nem entusiasma, salvo raríssimas exceções. Se o leitor pensa que exagero, basta compará-la às literaturas mais conhecidas e prestigiosas: a japonesa, a francesa, a americana, a italiana, a inglesa, a alemã, a russa. Naturalmente, o nosso amor-próprio nacional sempre nos consola… 

Como nos exemplos citados por Carpeaux, nossos escritores trabalham cercados de analfabetismo. E não será a pauta política dos dias atuais, explicitamente assumida como “causa”, que vai melhorar o nosso nível de criação literária e de consumo literário. A menos que haja uma radical revolução antropológica, a literatura continuará sendo a instituição que é, abrindo-se em polifônica legibilidade e, como escreveu Roland Barthes, “fazendo girar os saberes”, não dizendo nunca que “sabe alguma coisa”, mas que “sabe de alguma coisa” (Cf. “Aula”).

Que o analfabetismo brasileiro não nos desanime! Nesse sentido, mais que para o presente, é para o futuro que devemos escrever. É uma ilusão pensar que nós, autores brasileiros, somos lidos e temos um público. Mesmo as grandes editoras patinam quando o assunto é distribuição e circulação de obras. Num país populoso como o nosso, as tiragens continuam modestíssimas. O eixo Rio-São Paulo, onde se concentra o mundo editorial, pouco ou nada espelha de um país dividido em nações que pouco se conhecem mutuamente e são muito diferentes entre si. É o que temos para o dia.

Por fim, uma historinha e sua lição. A um apelo de engajamento feito por um incensado Sartre numa África que buscava a descolonização, um escritor nativo contestou o filósofo: se todos se engajassem politicamente, quem escreveria? Que literatura seria criada ou legada para o futuro dos países do continente? Os africanos continuariam lendo os europeus, sem ter uma literatura própria. O que não significava (nem significa) cair nos braços inertes da alienação. Afinal de contas, a história da literatura não é apenas estética, mas igualmente uma história, em amplo sentido, das mentalidades, da sensibilidade e da consciência humana. Não por acaso, a literatura é milenar, e não é justo evidentemente que milhões de excluídos (como os analfabetos) deixem de gozar seus prazeres e de a ela ter acesso como um direito.