A incompletude presente na formação social do Brasil representa uma tragédia tal, que bem parece uma versão atual daquilo que, há cerca de 2500 anos, os gregos foram capazes de traduzir, seja na literatura, como no teatro. Desse jeito brasileiro de ser, a tragédia nacional foi construída em pouco mais que meio milênio de história, como uma extensão compatível com as melhores essências de Sófocles e Eurípedes. Nas devidas proporções temporais, é claro.

Particularmente, confesso que esse aspecto inacabado do jeito de ser, agir e fazer acontecer de parte da sociedade brasileira é algo que tanto me incomoda quanto me instiga. Exemplo? Ninguém menos que Joaquim Nabuco fez o seguinte alerta: “a escravidão permanecerá por muito tempo, como uma característica nacional do Brasil”. De fato, a sociedade brasileira não só deveria se impressionar com tamanha percepção intelectual, cuja sentença assertiva se mantém firme e forte, após mais de um século de morte do grande abolicionista. Igual ou pior que isso é constatar a rigidez de um imobilismo como efeito reativo. Isso quando não descamba para o preconceito explícito e violento. Ou então, quando essa conduta se esconde na hipocrisia de empurrar o problema para debaixo do tapete. Enfim, uma questão não resolvida, que bem denota sua essência estrutural. Nesse contexto, o que trato como escapismo brasileiro está bem claro quando o assunto é raça ou etnia. E da abolição para cá essa página continua em aberto.

Ao mesmo tempo em que o lamento natural se revele como uma circunstância de momento, prefiro ampliar minha reflexão para mostrar o que propus no título deste texto. Ou seja, se nós cidadãos brasileiros estamos, por tais razões estruturais, longe de um marco civilizatório consistente com a atual realidade, particularmente, vislumbro a luz que vem do fim do túnel: o poder de se exercer a plenitude cultural.

É duro dizer que ser pleno na cultura, num país com a riqueza de uma diversidade tão expressiva, precisa representar um ofício verdadeiro de cidadania. O que deveria ser de civilidade instantânea vira uma dissimulação extemporânea. Assim, a identidade cultural persevera para se fazer presente na alma nacional, tal e qual outros itens de sobrevivência cidadã. Se num país de geografia imensa foi conseguida a unidade linguística, esse simples exemplo de resistência poderia sim ser expandido para outros tantos valores culturais.

Em inúmeras ocasiões, já tive oportunidades de tratar dos valores culturais, pelo exemplo de entropia gerada pelos sentimentos gaúcho e pernambucano. Distantes geograficamente, mas afinados nas suas próprias identidades. Valem aqui os exemplos comuns que cultuam tradições, bandeiras e hinos. Talvez os sensos de liberdade e independência ecoados pelos farrapos mais ao sul, ou mesmo, pelas revoluções pernambucanas, Praieira e da Confederação do Equador, mais ao nordeste, traduzam bem minhas impressões sobre os caldos culturais alcançados. Isso tem cheiro de nação brasileira, por mais que os esforços recentes tentem por um distanciamento étnico entre o RS e PE.  Paradoxalmente, no bojo de uma visão estrutural preconceituosa, que só serve para nutrir as tais narrativas de ódio.

Nessa minha defesa intransigente pela plenitude cultural, ainda reservo espaços meritórios para recentes matérias jornalísticas que reforçam importantes valores culturais. Tudo isso bem define as não menos fortes identidades de estados como o Pará e o Maranhão. Sinto-me, assim, compelido a dar tamanho destaque, justo para reforçar minha tese.

Começo descrevendo a emoção de uma adolescente, ao participar como alguém do público presente ao “Arraial do Pavulagem”, neste último feriadão de Corpus Christi. Disse ela: “estar aqui é o meu ser, isso é o que me identifica”. Nada mais lindo que um depoimento que exalta a identidade cultural, sobretudo, quando emana de quem integra uma juventude que carece dessa responsabilidade. Claro que essa postura só fortalece iniciativas outras que, nesse universo da cultura paraense, dão ainda mais brilho. Neste caso, refiro-me ao que assisti, recentemente, num programa de TV, quando a “embaixadora” Fafá de Belém difundia seu esforço pessoal de levar para sua “sala de visitas”, na Festa do Círio de Nazaré, nomes midiáticos ou não, capazes de assimilarem o que está por trás do “ser paraense”. É a sacralização do que se julgar como profano, numa diversidade cultural que se abraça com a fé religiosa. Entre ritmos, encenações e sabores estão ali reunidos os mais distintos valores, que garantem o melhor da genética identitária paraense.

Não muito diferente foi a carga de matérias que tem mostrado a mesma força e expressão da identidade, dessa vez no universo cultural maranhense. De tradições juninas bem diferentes àquelas praticadas nos demais estados nordestinos, o culto aos ritmos dos bois, dos tambores de crioula, cacuriás e lelês representam mais um espetáculo da diversidade. Portanto, outra face cultural que contribui para um diferencial no conceito de nação e, por conseguinte, para uma indispensável solidez na construção social.

O vetor resultante de toda essa diversidade regional, nas manifestações populares, representa o poder da cultura em resistir e transformar. O que seria da França, por exemplo, se não conseguisse ser resiliente às pressões que lhe retirasssem a capacidade de falar, escrever, ouvir e se ver, sem que o “american way of life” fosse um meio de contágio cultural?

No caso específico do Brasil, passadas as turbulências de uma “guerra cultural” de intenções exterminadoras, além de uma pandemia não menos destruidora, cabe-me toda vibração pela retomada das atividades culturais, em nível suficiente para exprimir a grandeza das respectivas identidades. O esforço nacional pelo reconhecimento pleno (político, econômico e social) de uma cultura que se faz forte pelo tamanho da sua diversidade, precisa ser visto como o principal fator de integração nacional. Aqui me espelho, sobremaneira, na percepção dos valores raciais e étnicos que dão o mais efetivo sustento ao papel da cultura. E isso se faz com empatias, sinergias e conexões, tudo feito na intenção de se jogar a favor de uma sociedade integradora, pacífica, capaz de dar o devido valor às contribuições raciais e étnicas.

O que causa espanto, naquele campo de quem, como um preconceituoso estrutural, joga como adversário da bandeira da diversidade, é vê-lo repetir e negar esse traço cultural tão essencial ao sentido de nação. Tratar nordestinos como “preguiçosos”, porque “dançam e tocam à beira da praia”, é uma estupidez igual àquela contradição, não menos anacrônica e arrogante, de fazê-los trabalhadores “escravizados”, naquilo que se vende como modernos arranjos de negócios. Vale dizer que esses conceitos e ofícios absurdos vieram do mesmo RS, cujos sentimentos nativos e compromissos libertários têm tudo a ver com o povo nordestino, em especial, o pernambucano, conforme as conexões que já citei neste texto.

É por isso que creio no poder da diversidade cultural, aquela que exalta o regionalismo pela formação derivada da mistura de raças e etnias, como referência para um marco civilizatório consistente e daí sustentável. É por esse caminho da pacificação e do respeito, em torno da identidade cultural, que se combate a desagregação odiosa que se tenta impingir na sociedade brasileira.

Modestamente, sou como Ariano, nosso menestrel da cultura, que admitia ver o pernambucano como um tipo de gaudério lá dos pampas, sem bombacha e chimarrão. Mas sou também um nordestino que assume o repertório do extraordinário Belchior, que admitia e assumia sua latinidade, ao preferir um tango argentino a qualquer que fosse o “blues”.

São por essas e outras que identidade cultural   é coisa séria. Tema de Estado que só se impõe para líderes com visões de estadista. Acima de tudo, uma clara razão de sobrevivência.